quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Este rio que descubro em mim

Este rio que descubro em mim
não sei em que fontes nasceu.
É de melancolia a frescura
desta água, e deste rio
que me mata a sede
e põe navios no teu riso.
Será de espanto esta torrente
que me enche e me esvazia
e não sei em que fontes nasceu
este rio que descubro em mim.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Saul Dias, nome literário de Júlio Maria dos Reis Pereira, irmão de José Régio, pintor, ilustrador e poeta:

Um Poema

Um poema
é a reza dum rosário
imaginário.
Um esquema
dorido.
Um teorema
que se contradiz.
Uma súplica.
Uma esmola.

Dores,
vividas umas, sonhadas outras...
(Inútil destrinçar.)

Um poema
é a pedra duma escola
com palavras a giz para a gente apagar ou guardar...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Despertai deuses antigos

Oh deuses antigos, despertai
do vosso olímpico sono,
vinde à Terra das Laranjas
e trazei o sagrado mosto
das antigas libações.
Oh deuses antigos, vinde,
vinde à Terra das Laranjas,
trazei o sopro antigo
que do mosto fazia o vinho
e tornava as profecias
em eternas melodias.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Manuel da Fonseca:

Antes que Seja Tarde

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Soneto sem Musa


Eram claros esses teus olhos cheios
De onde manam luzes como fontes
Como alegria vinda dos montes
Que forma frescos e mansos ribeiros

Dos meus olhos sempre foram alheios
De presos em distantes horizontes,
Juízes não eleitos, mas arcontes.
Como rosas brincando de luzeiros

Musa não eras, mesmo que te cante
E os teus olhos tinham doces rosas
Como se a luz fora diamante

Rosas tinham, eu sei, mas angulosas.
Claras, e de perfume tão distante,
Frescas fontes, águas tão amargosas.

António Eduardo Lico
Um poema de Fernando Pessoa pela voz do seu heterónimo Ricardo Reis:

As Rosas Amo dos Jardins de Adônis

As Rosas amo dos jardins de Adônis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim;


De Eros era a rosa

De Eros era a rosa
que em Prometeu
foi Fogo e limo.
depois centelha de vida.
Seria já rosa
o que Pandora
escondia na caixa divina?
Da rosa apenas ficou
a esperança encerrada;
a caixa fechou-se.
Prometeu, eternamente
devorado, e sempre renascido
como o lume que se reacende
e torna fresca a eterna rosa.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Ezra Pound:

SAUDAÇÃO SEGUNDA

Fostes louvados, meus livros,
porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
Não renegueis vossa progênie.

Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:

Então é isto, dizem eles, o contra-senso
que esperamos dos poetas?
Onde está o Pitoresco?
Onde a vertigem da emoção?
Não ! O primeiro livro dele era melhor.
Pobre Coitado ! perdeu as ilusões.

Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro !
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes !)
Ide e dançai despudoradamente !
Ide com travessuras impertinentes !

Comprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guizos, vossos confetti.
Ide ! rejuvenescei as coisas !
Rejuvenescei até The Spectator.
Ide com vaias e assobios !

Dançai a dança do phallus
contai anedotas de Cibele !
Falai da conduta indecorosa dos Deuses !

Levantai as saias das pudicas,
falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas -
Dizei-lhes que não trabalhais
e que viverei eternamente.

Tradução de Mário Faustino

domingo, 27 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Canto por las cigarreras de Sevilla


La niña, com su alma suspendida
En las fraguas de la saeta
le pedia a la Macarena dos lunas

Ay Sevilla que se perdieran
tus cigarreras. La Carmen
y su tragedia de riendas y siedas

perdida en las nervuras
del Guadalquivir que corre
en todas las varandas de Sevilla

Y todo es solo aire y agua
y se queda en un punto solo
la Macarena y sus lunas

António Eduardo Lico
Uma poesia de Miguel Torga:

Miradoiro

Não sei se vês, como eu vejo.
Pacificado,
Cair a tarde
Serena
Sobre o vale,
Sobre o rio,
Sobre os montes
E sobre a quietação
Espraiada da cidade.
Nos teus olhos não há serenidade
Que o deixe entender.
Vibram na lassidão da claridade.
E o lírico poema que me acontecer
Virá toldado de melancolia,
Porque daqui a pouco toda a poesia
Vai anoitecer.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Aos poetas que procuram o Graal


Não invejo os poetas que buscam o Graal
nem os que procuram as vírgulas
que não se escrevem.
As palavras são mais lendárias
que todos os Graal, excepto o Graal.
Eu não procuro o Graal; sei que ele
existe na sua não existência.

Ele, o Graal,
plácido como convém a um Graal,
não espera visitas de poetas.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Al Berto, nome literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares:

Foram Breves e Medonhas as Noites de Amor

foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Elegia para uma flor morta

A obscura flor morta
pensa ainda no seu perfume
quando os insectos
procuram nas suas pétalas mortas
a fragrância que a animou.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Valter Hugo Mãe:

o homem que já não sou

não me olhes agora que estou
mais velho e não correspondo em
nada ao homem que
amaste, procura encarar a tristeza
sem me incluíres, seria demasiado
cruel que me usasses para a
dor. para ti
quis trazer as coisas mais belas
e em tudo o que fiz pus o
cuidado meticuloso de quem
ama. não me obrigues a cortar os
pulsos quando fores num minuto ao
jardim com o cão

esta noite, sem notares, sustive a
respiração e quase morri. não deste
por nada. julgaste que voltei a
ressonar e até terás esboçado um
sorriso. e se eu pudesse morrer
enquanto sorris, pergunto

deixo para depois, ou talvez
desista. mas não pode ser se
tu me olhares em busca de tudo o que
já não existe. não pode ser, levo a
faca maior para debaixo do meu
travesseiro, juro-te que me
mato se continuares assim

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


A palavra das rosas

Dai-me uma, duas palavras
com que escreva uma rosa no teu sorriso

António Eduardo Lico
Uma poesia de Fiama Hasse Pais Brandão:

Viver na Beira-Mar

Nunca o mar foi tão ávido
quanto a minha boca. Era eu
quem o bebia. Quando o mar
no horizonte desaparecia e a areia férvida
não tinha fim sob as passadas,
e o caos se harmonizava enfim
com a ordem, eu
havia convulsamente
e tão serena bebido o mar.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


O canto em mim

Canto como se fosse sempre noite
e as palavras como sombras
oráculos da voz. ausente.

O deus antigo murmura
e a música esvai-se
como se o canto fosse em mim.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Alexandre Pinheiro Torres:

Pode acontecer que já esteja bem morto
quando alguém disser que eu pudera ser grande;
e, então, será inútil o póstumo conforto:
nunca gozarei não ser o pobre Alexandre!

Pode acontecer que as hipócritas dores
que venham trazer ao pé do mausoléu,
perpassem por ele em tão fortes clamores
que façam abrir-me o ferrolho do Céu.

Pode acontecer que eu, então!, tenha o cúmulo
de todas as coisas sonhadas e vãs,
e que, assim, na vida começada no túmulo,
venha a conhecer o esplendor das Manhãs!

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


De madrugada as lembranças ardem


No meu quarto estou só
e comigo ardem apenas lembranças.
o meu quarto é frio
e fica azul nas madrugadas.
A muda Lara, no seu silêncio de deusa
abraça-me com os seus cabelos.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Sá de Miranda:


Desarrezoado amor, dentro em meu peito
Tem guerra com a razão, amor que jaz
E já de muitos dias, manda e faz
Tudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,
Tudo soberba e força, faz, desfaz,
Sem respeito nenhum, e quando em paz
Cuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte a razão tempos espia,
Espia ocasiões de tarde em tarde,
Que ajunta o tempo: enfim vem o seu dia.

Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata traições, que não confia
Nem dos seus. Que farei quando tudo arde?

domingo, 20 de janeiro de 2013

Reponho uma poesia do poemário Sombras luminosas:


Um Olhar Sobre a Chuva

Com olhar inexistente
olho a chuva que cai no chão
para além da vidraça

A chuva cai sempre com graça.
Vê-la através de uma janela
líquida e insubstancial

a chuva, substância imaterial
que está para além do olhar
e para além de todas as janelas.

Redondas, as gotas, são elas
que tecem a estranha harmonia
da música que tocas ao beijar o chão

para aquém da vidraça, em vão
tento adivinhar-te caindo
com olhar inexistente

António Eduardo Lico
Uma poesia de Jaime Salazar Sampaio:

ficou da infância a febre
de correr parado
pelas estradas

podes chamar-lhe versos
são viagens

ficou na infância a fisga
de arremessar ao vento

podes chamar-lhe versos
são pedradas

sábado, 19 de janeiro de 2013

De Carlos Paredes Em Memória de Uma Camponesa Assassinada:


Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Rimbaud e Baudelaire eram franceses...


Rimbaud e Baudelaire eram franceses,
poetas franceses, concluo.
Não estudo Lógica, mas deveria fazê-lo.
se o fizesse,  saberia, ver  para além
do que se pode ver numa manhã obscura,
saberia até da estética usada
pelos poetas franceses. Sem dúvida,
saberia muito de estética, e das estéticas.
Saberia que Baudelaire não foi poeta maldito;
todos os poetas são benditos.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Vitorino Nemésio:

Arrependo-me de a Meter num Romance

O poema tem mais pressa que o romance,
Asa de fogo para te levar:
Assim, pois, se houver lama que te lance
Ao corpo quente algum, hei-de chorar.

Deus fez o poeta por que não descanse
No golfo do destino e amores no mar:
Vem um, de onda, cobri-la — e ela que dance!
Vem outro — e faz menção de me enfeitar.

Os outros a conspurcam, mas é minha!
Chicoteá-la vou com a própria espinha,
Estreitam-me de amor seus braços mornos,

Transformo seus gemidos em meus uivos
E torno anéis dos seus cabelos ruivos
Na raspa canelada dos meus cornos.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Luz


A sombra escura nasce na luz.
A luz nasce na imagem da palavra.
A palavra nasce em segredo no Verbo.

De verde, as relvas


As relvas que se vão revelando.
Escondem-se de verde.
Ocultam toda a Primavera.


António Eduardo Lico
Porque está a nevar e bem, lembrei-me de uma poesia do heterónimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, A Neve:

A Neve

A NEVE PÔS uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Melodia que a água do rio canta...

Não há melodia na água de um rio.
É apenas água que corre.
A melodia consiste em vê-la correr.


As ondas levam-nos para longe...

A onda, um cais, um navio.
A distância que as ondas vestem.
E fazem rolar para ainda mais longe.

António Eduardo Lico

Uma poesia de José Gomes Ferreira:


Viver sempre também cansa

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


No Inverno o sol...

No Inverno o sol vive em Capricórnio.
Sobe alto a Sul como se esperasse.
O breve futuro mais a Norte.


O canto da cigarra


É breve o canto da cigarra.
Existe para enfeitar o Verão.
Não pode soar no Inverno.

António Eduardo Lico

Uma poesia de António Ramos Rosa:


Não Encontrarás Aqui A Fluência

Não encontrarás aqui a fluência
de algum ventre polido ou verso límpido
porque estas palavras conhecem as paredes
que não ouviram a angústia e a vertigem

mas têm o sal das lágrimas obscuras
para sempre ignoradas para sempre futuras
nem ouvirás o som das aves frias
mas sentirás o arrepio de sombras sobre as pedras

ouvirás talvez um suor de silêncio

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

o tema "Saudades" tocado na viola de arame dos Açores por Rafael de Carvalho:


Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Areia da praia


Na praia ao pé do mar.
A areia molha-se na água.
Como se esperasse ser líquida.



Sorriso de pássaro


Como tu, que és pássaro.
Fugaz no teu gracioso voo.
Breve no teu sorriso.

António Eduardo Lico
Um soneto de Camões:


Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,
Verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras;


Melodia de areia


Uma melodia na areia.
A música que se eleva.
A clepsidra sempre vazia.


Tudo


O murmúrio da pedra.
O silêncio da erva.
Tudo é agora.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Herberto Helder:

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes –
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
- Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
- Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas
Traziam o sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros –
comovidos, difíceis, dadivosos,
ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
- E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva - tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.

- E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
Para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
Nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
Celestes que fulguram lentamente
Até uma baía fria – que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
Entre um incêndio,
Junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras;


A noite do rouxinol


Melodioso e secreto rouxinol canta.
Tange as invisíveis cordas da madrugada.
O silêncio floresce em música.

Eros e Afrodite


Colocada perante Amor, Afrodite cedia.
Os deuses queriam de Eros corromper o silêncio.
E havia uma rosa entre Eros e Afrodite.

António Eduardo Lico


Uma poesia de Albano Martins:

Entardecer na Praia da Luz

Espreguiçados, os ramos
das palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia. É já noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
de buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que cegueira, a noite
é uma embriaguez perfeita.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Orfeu mínimo

Havia Orfeu e havia música.
Os deuses habitavam a Terra.
O Olimpo ficava longe. Muito longe.


Mariposas verdes

Las mariposas heridas son verdes.
Verdes oscuras como los olivos.
Su vuelo eres ya la sombra.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Vasco Graça Moura:

o suporte da música

o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Era um rio...

Era um rio, era alegria.
Algas verdes, que eram rosas.
Escorriam, e coroavam os teus cabelos.


Primavera e música


Como se fosse música.
Ou a Primavera que corria.
Sem saber que o Verão estava perto.

António Eduardo Lico

Uma poesia de David Mourão-Ferreira:

Presídio

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?

E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Green Fire


Was the fire, was the heat.
Was the green of your eyes.
Was the whiteness of your tears.


El Tocaor


El tocaor rompe la guitarra.
Vuelan pájaros rojos de sus cuerdas..
Y el tocaor toca por bulerias.



António Eduardo Lico
Uma poesia de Jorge de Sena:

Eternidade

Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.

Nasceste agora mesmo. Vem comigo.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Como se o mar nos teus olhos...

Havia mar nos teus olhos.
O mar todo.
E eu, o desolado navio.


Neve e fogo 

Era neve e era pássaro.
O fogo que ardia impetuoso.
E marcava de rosas o teu corpo.

António Rduardo Lico

Uma poesia de Catarina Nunes de Almeida:

A PROSTITUTA DA RUA DA GLÓRIA

Tanges a noite sem saber que a noite
é uma cítara com cordas de ferro
onde os insectos ferem as asas.
O teu canto arranha o azul da chama
e a cidade desperta para a dança:
um labirinto de minotauros
sorvendo o odor do primeiro tango –
um ténue resquício de feno escondido na nuca.

Ainda ontem foi lua cheia no teu ventre.
Sobrou um aquário onde os cegos vêm depenicar
a caspa dos pombos.
Hoje não saias, deixa-te ficar.

Pelos corredores as fêmeas largam o pó
das florestas quentes –
ténues resquícios de feno escondidos na nuca.

Hoje não saias, deixa-te ficar.
Deixa dormir o teu sexo cansado de morrer.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Fuente y rosa

Era fuente.
Y era rosa.
Tu boca cerrada.

El ruiseñor, el rocío y el llanto

El ruiseñor canta en la noche.
Y la noche se llena de silencios.
En la mañana el rocío es el llanto de la noche.

António Eduardo Lico


Uma poesia de Vasco Gato:


Um dizer ainda puro

imagino que sobre nós virá um céu

de espuma e que, de sol em sol,

uma nova língua nos fará dizer

o que a poeira da nossa boca adiada

soterrou já para lá da mão possível

onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos

e passemos os séculos sem rosto,

apaguemos de nossas casas o barulho

do tempo que ardeu sem luz.

sim, cria comigo esse silêncio

que nos faz nus e em nós acende

o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,

que sobra no mundo um dizer ainda puro.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:

Fonte dos desejos

Havia uma fonte.
E havia a sede.
Havia o desejo.


Inútil

Inútil e fermosa.
A lágrima de cristal.
Cai e seca.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Inês Lourenço:

Miramar

Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:

Blues

Não era azul.
Apenas quisera ser azul.
Quisera apenas ser mar.


Calor

Como o calor que derrete a neve.
O teu sorriso era fugaz.
E voava leve, tão leve.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Filipa Leal:

Douro

Não sei se prefiro o rio
ou o seu reflexo nas janelas espelhadas.

De um lado
os barcos ancorados,
do outro lado:
barcos - na imediata memória das âncoras.
Deste lado, o porto, ou o cais,
contracenando com a sua própria inexistência
daquele lado.

Existirá aquele rio nos espelhos?
Poderá este subsistir sem as janelas?

Sou dourada como os peixes que te
desabitaram. E, do outro lado, sou
desabitada.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Este rio que corre sem águas:

Pequena lágrima

A lágrima melancólica.
Era seiva de flor.
Aroma de fruto.

Enigmática


Enigmática, no sol.
Eras na praia.
Apenas murmúrio do mar.

António Eduardo Lico


Continuo com Daniel Faria.
Uma breve biografia:
Daniel Augusto da Cunha Faria nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de Abril de 1971.
Frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – Porto, tendo defendido a tese de licenciatura em 1996.
No Seminário e na Faculdade de Teologia criou gosto por entender a poesia e dialogar com a expressão contemporânea.
Licenciou-se em Estudos Portugueses na faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante esse período (1994 - 1998) a opção monástica criava solidez.
A partir de 1990, e durante vários anos, esteve ligado à paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses. Aí demonstrou o seu enorme potencial de sensibilidade criativa encenando, com poucos recursos, As Artimanhas de Scapan e o Auto da Barca do Inferno.
Faleceu a 9 de Junho de 1999 quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, da operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Cantiga Secreta


De secreto nome havia uma flor.
E era também um rio e melodia.
E era breve, tão breve.

Mar ou Oceano, ou apenas água


No oceano triste, as velas se alevantaram.
Descuidadas sereias inundam o convés.
Havia só a água, e a espuma.


António Eduardo Lico

Uma poesia de Daniel Faria:

Foram pétalas
Foram pétalas
Ou olhos de deusas 
Que calquei?

Não, 
Não me digam

Eu sei
Que foram Sonhos 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Cantiga de Verão


Inocente é o Verão.
Que de verde ondula searas.
E habita, pleno, as rosas breves.

Calor

Era o calor, esse abismo.
Que te mordia as veias.
Era o Verão que te anunciava.


António Eduardo Lico
Uma poesia de João Rasteiro:

A memória do nome

Esmaga em prensas de laje os golfos do nome
dir-se-ia um nome de larva ou sílaba azeitada
e o corpo está enrijado como Jesus a prumo
ser imponderável revestido de folhas brancas,

sob o arco da língua retesada os cascos surdos
esta boca imunda em lava aberta esta tribo
e o fogo nas mãos como soldas no centro do ar
o ritmo asfixiante do verbo o hálito sangrento,

toda a cegueira da sombra das liras espiando
ó bem amado nome diluído na refracção do eco.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Cantilena do vinho e da rosa


O vinho é como a rosa.
Rubro é o seu perfume.
Secreta é a sua flor.

Pequena música

Era apenas melodia.
Apenas voo de pássaro.
Era apenas o meio-dia.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Cruzeiro Seixas:



A tua boca adormeceu

parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.

Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.

E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de ouro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.

As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.

Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de ouro
que além flutua.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Quase

Quase o mar, quase um navio.
Quase névoa, quase lágrima.
Quase perdido, o teu olhar, na lonjura.


Pequena canção para uma sombra
Era uma sombra, um sorriso.
Era redonda a lágrima.
Que esculpia melancolia no meu rosto.

António Eduardo Lico

Uma poesia de António Franco Alexandre:

XIII

Anda, vou-te mostrar a terra

dos teus pais, avós, antepassados

tão antigos que os podes escolher.

Este aqui é noé, de barba por fazer;

meteu na arca puro e impuro, bem e mal,

inventou o vinho, homem melhor

da sua geração ( não é grande elogio ),

teve filhos, netos, é de crer que morreu.

Estoutro, não sei bem, era pirata na malásia.

Vês as colinas? São tuas, quando

as olhas a direito. Realmente tuas,

parte de um mundo teu.

Sim, isso são filosofias,

tens razão. ( E tem graça ao ter razão ).

Anda daí, vou mostrar-te o colete de forças

onde era costume, sabes, tratar casos assim.
Mudar de Vida, de Carlos Paredes: