domingo, 30 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


A cal que não fosse ávida de água...

Nunca escrevi versos em que usasse a palavra cal.
Eu sei que nunca tive razões para o fazer,
mas nunca fiz, e assim o digo.
Reconheço que já usei a palavra óxido,
não muitas vezes, mas usei, noblesse oblige.
Usei, já o disse, não para oxidar o poema,
ou provocar outras reacções,
não que eu seja dado ao estudo da química
mas dizem-me que pode haver reacções...
A cal, ao que dizem, é ávida de água
E eu só quero a cal que não é ávida
de água, seja água, água, ou oxigenada;
não digam que estou a usar óxido
neste fazer o poema.
Não sou futurista, nem me corre
nas veias o mais leve ânimo post-moderno,
por isso usei óxido com moderação
e ainda espero a cal que não seja ávida de água.

António Eduardo Lico
Amadeu Ferreira traduziu para mirandês mais de cem autores portugueses e estrangeiros.
Camóes e Fernando Pessoa e os respectivos heterónimos foram traduzidos na íntegra.
Fica uma tradução de uma poesia de O Guardador de Rebanhos do heterónimo Alberto Caeiro:


De la mais alta jinela de mie casa
Cun un lhienço branco digo adius
Als mius bersos qu
e sálen pa la houmanidade.

I nun stou cuntento nien triste.
Esse ye l çtino de ls bersos.
Screbi-los i debo de amostrá-los a todos
Porque nun puodo fazer l cuntrairo
Cumo la frol nun puode scunder la quelor,
Nien l riu scunder que cuorre
Nien l’arble scunder que dá fruito.

Mirai-los que ban yá loinge cumo na deligença
I you nien sequiera sinto pena
Cumo un delor ne l cuorpo.

Quien sabe quien ls lerá?
Quien sabe a que manos eiran?

Frol, apanhou-me l miu çtino pa ls uolhos.
Arble, arrincórun-me ls fruitos pa las bocas.
Riu, l çtino de la mie auga era nun quedar an mi.
Abaixo-me i sinto-me quije cuntento,
Quaije cuntento cumo quien çcansa de star triste.

Ide, ide-bos de mi!
Passa l’arble i queda arramada pula Natureza.
Murcha la frol i l sou puolo dura siempre.
Cuorre l riu i entra ne l mar i la sue auga ye siempre la que fui sue.

Passo i quedo, cumo l Ouniberso.



O original em português:


Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.



sábado, 29 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Cur non mitto meos tibi, Pontiliane, libellos ?
Ne mihi mittas, Pontiliane, tuos.

(Marcial, Epigr., VII, 3)

O binómio de Newton não é belo
é apenas um binómio:

é uma expressão que permite
calcular o desenvolvimento
de (a+b)n, sendo a+b um binómio
e n um número

Se ao menos n não fosse um número...
mas é! Dizem que é até um número natural

Os números podem até ser naturais
e pode ser reclamada a propriedade dos binómios;
continuarão a ser apenas expressões
de algo que não sabemos sequer se sabemos

Alexandre tinha inveja de Aquiles
que foi cantado por Homero.
Não teria inveja daquele binómio, o de Newton;
ao que sabemos, Newton não cantava

E mesmo que cantasse!
Já tinha estragado tudo
fazendo um binómio

Binómios não se fazem;
sabe-se que se podem fazer.
mas não se fazem!

Goethe preferia a injustiça à desordem
Newton preferia os binómios
o que será pior?

O binómio de Newton não é belo;
se não fosse de Newton, nem binómio
seria belo

António Eduardo Lico

Uma poesia de Luís Veiga Leitão:

DOMINGO

Hoje é domingo? Não e sim,
Para ser dia que se vive
mergulho as mãos em mim
e tiro os domingos que tive.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Once… a few verses


Once I wrote a few verses

there were nightingales on your fingers,
green snakes grew up from your hair
as if Spring was inside you

I wrote a few more
but I can’t remember them
they were destroyed
by the acid only time has

someone told me
that using the word acid
was good for my poetry
critics love reading
this word trough the poems

oh critics, see how well
I use the word acid!
What? No, I am not a chemist
nor even a grammarian
I just draw words
without knowing the meaning

If I was a poet, pardon, a critic
or a thin literate, I should know
that nightingales belong to the dawn
and snakes to the Scriptures.
Spring is a question of Cancer
or Capricorn, all depends on latitude.
I am not a geographer
and I have to finish some verses:

there were nightingales on your fingers,
green snakes grew up from your hair
as if was Spring inside you…

If you don’t mind!

António Eduardo Lico
Uma poesia de Álvaro de Campos:



Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades


E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do «Sentimento de um Ocidental»!



Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas.

Que nem são países, nem momentos, nem vidas.

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Humedece interiormente o instante lento e longínquo!



Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lhas possa dar...



Quando eu morrer,

Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,

Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,

Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos

Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,

Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,

Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,

Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,

Platão sonhando viu a ideia de Deus

Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.

Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.



Seja por esta hora que me leveis a enterrar,

Por esta hora que eu não sei como viver,

Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,

Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,

Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,

Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível

Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.



Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.

Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio

A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,

Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria

— Tu que me conheces — quem eu sou...

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Obscura é uma clara palavra

Obscura é uma palavra que não é obscura
os poetas é que gostam de a usar.
Obscura, ela é clara na sua intenção.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Rita Dove:


The Bridgetower


per il Mulatto Brischdauer
gran pazzo e compositore mulattico

––Ludwig van Beethoven, 1803

If was at the Beginning. If
he had been older, if he hadn’t been
dark, brown eyes ablaze
in that remarkable face;
if he had not been so gifted, so young
a genius with no time to grow up;
if he hadn’t grown up, undistinguished,
to an obscure old age.
If the piece had actually been,
as Kreutzer exclaimed, unplayable––even after
our man had played it, and for years,
no one else was able to follow––
so that the composer’s fury would have raged
for naught, and wagging tongues
could keep alive the original dedication
from the title page he shredded.

Oh, if only Ludwig had been better-looking,
or cleaner, or a real aristocrat,
von instead of the unexceptional van
from some Dutch farmer; if his ears
had not already begun to squeal and whistle;
if he hadn’t drunk his wine from lead cups,
if he could have found True Love. Then
the story would have held: In 1803
George Polgreen Bridgetower,
son of Friedrich Augustus the African Prince
and Maria Anna Sovinki of Biala in Poland,
traveled from London to Vienna,
where he met the Great Master
who would stop work on his Third Symphony
to write a sonata for his new friend
to premiere triumphantly on May 24th,
whereupon the composer himself
leapt up from the piano to embrace
his “lunatic mulatto.”

Who knows what would have followed?
They might have palled around some,
just a couple of wild and crazy guys
strutting the town like rock stars,
hitting the bars for a few beers, a few laughs . . .
instead of falling out over a girl
nobody remembers, nobody knows.

Then this bright-skinned papa’s boy
could have sailed his fifteen-minute fame
straight into the record books––where,
instead of a Regina Carter or Aaron Dworkin or Boyd Tinsley
sprinkled here and there, we would find
rafts of black kids scratching out scales
on their matchbox violins so that some day
they might play the impossible:
Beethoven’s Sonata No. 9 in A Major, Op. 47,
also known as The Bridgetower.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Havia um crítico...

Havia um crítico que gostava de criticar poesia.
Digo analisar. E analisava!
Analisava em jeito de caixa de petri,
Dizem-me alguns que era mais tubo de ensaio.
Não sei se era um senhor alto, ou baixo,
se usava chapéu e se fazia ginástica.
Se a fazia, não a devia fazer
os críticos nunca fazem ginástica,
com excepção dos críticos que a fazem,
poderia dizer um filósofo
que subitamente virasse lógico.
Perante o poema, sim, faz ginástica:
Fala de Lyotard, sim esse mesmo
que foi promovido a fenomenologista;
vejam bem, ele falava de fenomenologia,
e nem sei como não o promoveram
à incarnação gaulesa de Kant:
assim, uma espécie de Kant
perdido nos canteiros de Versalhes
e nas alamedas das universidades
olhando para as pernas das jovens estudantes.
Por sorte (a de Kant), Kant há muito morreu,
ainda seria olhado como pós-moderno.
Estou a ver: Kant, esse prolegómeno pós-moderno!
Depois desse Lyotard é que chegam os exercícios pesados:
Chega Sein unt Zeit, chega Heidegger.
Pois ele não dizia que era herdeiro
legítimo da tradição metafísica europeia,
e que estava solidamente escorado no niilismo,
e até falava de ontologia
e do esquecimento do ser como centro de interrogação
e que a linguagem é a casa do ser?
Se for caso disso, remata o exercício com Baudrillard,
de caminho vai dizendo que Platão e Aristóteles eram gregos...
de caminho vai dizendo que Platão e Aristóteles eram gregos...
Eu nunca escrevi um poema que fosse assim:
As rosas ao meio dia são mais antigas
que as rosas às onze horas
Eu sei que nunca escrevi, mas poderia ter escrito
Não escrevi, porque não sou dado a exercícios.
Se escrevesse, iriam trazer Lyotard, para falar
Da pós-modernidade moderna sem modernistas,
de como a democracia tanto deve
ao professor nazi de filosofia
Martin Heidegger de seu nome, substituto de Husserl
iriam trazer esse Baudrillard, ou outros.
Melhor era usarem um manual de jardinagem
um dos bons, que os há.
Os manuais de jardinagem sabem falar de rosas.
Os poetas, como não sabem falar de rosas
falam das rosas que irão um dia existir,
se existirem!

António Eduardo Lico





Uma poesia de Kleber Lima

Passam homens – oscilam céus
outro inferno ascende o uno
vário eclipsado à vacilante densa
ponte
          fonte onde
equilibro um beribéri coração
transfractal
                    na
táctil iluminação do vento
ar dentro de ar em movimento
sopro dolor
                    d’ela
púrpuro gume do amar
ser entre
                 ventre e sono
o canto
pelas brechas do abismo
consumado humano.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


The dance of the Death is clumsy…and gracious

The Death knows to dance,
dances from birth till the final compass.
Clumsy and gracious she wanders
inside your veins and gazing
into your eyes as if wanted to kiss you.
One day, that dark Lady
shall return from your bones
and invite you for a last tango.
Smile and accept.
You are dancing for the eternity.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Jack Gilbert:

The Great Fires

Love is apart from all things.
Desire and excitement are nothing beside it.
It is not the body that finds love.
What leads us there is the body.
What is not love provokes it.
What is not love quenches it.
Love lays hold of everything we know.
The passions which are called love
also change everything to a newness
at first. Passion is clearly the path
but does not bring us to love.
It opens the castle of our spirit
so that we might find the love which is
a mystery hidden there.
Love is one of many great fires.
Passion is a fire made of many woods,
each of which gives off its special odor
so we can know the many kinds
that are not love. Passion is the paper
and twigs that kindle the flames
but cannot sustain them. Desire perishes
because it tries to be love.
Love is eaten away by appetite.
Love does not last, but it is different
from the passions that do not last.
Love lasts by not lasting.
Isaiah said each man walks in his own fire
for his sins. Love allows us to walk
in the sweet music of our particular heart.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemaŕio Amanhecer obscuro:


Em Maio houve Maiakovski

Em Maio veio Maiakovski, o futurista
trazer as flores que Maio não tinha
e versos que soavam como bigornas.
Se calhar pensam que foste jansenista,
ou modernista, sem ser moderno.
Como tu gostavas de quadrados!
Há quem te pense até um geómetra
e veja nos teus poemas
o despontar de um novo Pitágoras -
de cada adjectivo fazias uma hipotenusa
davas formas poligonais aos advérbios
até fizeste triângulos com interjeições...
e da sintaxe fizeste um soviete, o supremo.
Dizem-me que mesmo um soviete
por supremo que seja não é geometria.
Não terá ao menos uma linha recta?
Era Abril, e já pressentias o futuro Maio
tu que eras um futurista condicional
e desenhaste em Abril
todas as flores que devem enfeitar os Maios.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Eugénio de Andrade:

Nunca o verão se demorara

Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?

domingo, 23 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Marinheiros de Lisboa (nas Descobertas)

Eram apenas carne e ossos obscuros
os anónimos marinheiros de Lisboa.
Foram gente famosa, homens de aventura
e ninguém os conhecia, ou veio a conhecer.
Navegavam como se o Tejo nunca acabasse,
carregavam todas as gaivotas, como se
de guitarras se tratasse, e cantavam...

António Eduardo Lico
Uma poesia de Raquel Nobre Guerra:

BÍLIS NEGRA

aqui morro muitos anos convosco
estremecendo à sabedoria dos tolos
aqui certo clima de nojo e uma galeria viva
de absurdos para a visão integral da coisa
solene
peçam-se óculos para ver melhor, peçam-se janelas
para ver o mar
eu estarei certa à chuva própria desse estado
adequada e a direito despejando-me aqui
chamo a minha mãe ao corpo, não tenho nada
preparado, tenho um telegrama visual e chamo
alto e chego para provar que este mote é só um meio
de porte
há-de encastelar em areia o finalismo rente aos dedos
subir-me à boca subir em bando à do louco onde
terei posto a minha
e aí na ervinha de um passeio restar
à perseguição da luz como um animal deslumbrado
que atravessou

sábado, 22 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Horas felizes!

As horas são felizes
Porque não sabem que são felizes.
Nem sabem que são horas
e têm minutos e segundos.
nem imaginam que sisudos
Académicos dizem que têm
décimos de segundo, centésimos de segundo
e inclusivé nano segundos!?
Divertidos esses académicos,
banais imitadores de Zenão.
Quase conseguiram que
As horas não acabem

António Eduardo Lico
Uma poesia de Sandra Guerreiro:


ponta de arco onde as vestes cerram
vácuos que as listagens tecem

longe das tribos das águas

peixes verdes e terrenos

lâmpada de incenso que se aflora louca
as estirpes a baloiçar suores
frisos que atravessam os dorsos

os de sono das águas

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Não sei o que é a Poesia...

Não sei o que é a Poesia;
Se o soubesse, não escrevia poesia.
Para quê escrever o que já se conhece?
Escrevo palavras, e espero
que deuses descuidados
tratem de lhes dar sentido.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Teresa Fonseca:

Cantiga d’amigo

no lugar da fonte ficou o fluxo vermelho quebrado pela fluidez do cervo
ela brada e debanda e o amigo parado, refastelado. Pois então!
a areia molhada sonha com uma avelaneira florida no
corpo outono
e o rap de repetição.

o barco despido atracou uma e outra e outra vez
suja de lodo não mexe. tremida.
apodrece já a memória da romaria na mãe enguiçada
e as amigas fadadas de fresco enfadam no lar os maridos que embarcam noutras marés de velas enfunadas
e o rap de repetição.

no lugar da avezinha a vizinha de véu corvo com olhos de peixe de vidros estilhaçados
e o amigo que vem de peniche pavoneado e mareado e de velas apagadas.
ela sóquente só quente só e quente
nem albas nem salvas nem valsas

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Babylon


Lloyd was Lloyd.
He was also Georges.
So he was Lloyd Georges,
the Welsh magician.
Being Lloyd, he was Georges.
Being Georges, he was Lloyd.
He was destinated to be Lloyd Georges.
Lloyd Georges was dual.
No, he wasn’t because he was Lloyd and Georges,
or Welsh and British, even lawyer and politician.
Our man had always two positions as a politician;
perhaps, as a lawyer, even more
you know how the lawyers are…
Good old Lloyd…and Georges
let me remember you a minuteness;
oh that minuteness was laying
obscure at Babylon sands;
you see, I couldn’t resist to use
the word obscure; all poets use it, sooner or later.
Remember old Lloyd?
Oil, that’s it! Oil!
Remember good old Lloyd
your words, your joy –grab all that oil!
Where was your dual and proverbial position?
I know you was Lloyd, you was Georges,
later Lloyd Georges.
Let me guess old Lloyd, let me guess
I can see (and hear) you – There is Babylon
I am a lawyer; I want the hanging gardens at Downing Street
to study better this legal monument that is the Code of Hammurabi
the oil is just a detail, as the sand is just a detail in the desert
and I (him, Lloyd Georges) am not Nabuchodonosor,
I am not in prophet Daniel’s famous dream
even a prophet, a good one, couldn’t predict me.
Good old Lloyd Georges, Oh my welsh magician
you are dual and cold on your grave
and Babylon rests ignored under antique sands
never more vanquished, never more found.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Miguel Monteiro:


Mármore & Vitral

— was bleibet aber


estilhaços de uma mente misturada
com um segundo caos. se houvesse quem
me falasse
da torre de Hölderlin,
da cidade destruída. e sozinho sta.
pois caótica é a ordem até que das janelas
os vitrais brilhem com o Sol. a Grécia
é luz velha. colher flores;
adónises, que importa? o fogo do inferno
na aurora, calmo, tocou-me as pálpebras,
e o valor está na lei — aquilo que restará
não bastaria. é um vidro quebrado
que brilha no chão. A grécia
está longe, do arquipélago, temos os nomes da pléiade
apagada no céu. Nomes nus,
se à distância ainda brilham estilhaços
de belo vitral duma mente,
canto adoneus se
houvesse água duma fonte branca,
recusaria. star sozinho,
a memória do Éden, seja mentira.
é mentira a memória quebrada. Conta-se
que houve uma vez um homem
que se salvou a si próprio do pântano
que se puxou pelos próprios cabelos. E quem
não puxará o mais belo dos retornos? A Grécia
é difícil. cantarolar com uma língua
de fogo, o sonho derrete-se gelado e em luz.


eu digo um nome para dizer
o outro. o que é que eu fiz?
começa, vê quem te acompanha.
onde estão os teus amigos?
escavei uma palavra, podei-lhe a palavra,
corri a via negativa. no fundo
sta o divino vitral. mas
de que profundezas virás tu, Deus-Sol,
quando a neve nos cobre os narcisos
e as nuvens são a noite do mundo?
mas com relâmpagos se queimam retinas.
só há um remédio para os equinócios,
deus-da-Páscoa, cantar a beleza de Chartres,
sub-rosa suspiros fixar nas retinas
dos olhos dos mortos que vêem o nada, dos vivos
que vêem a luz
dos seus deuses e cegam,
que viram ideias no eco das rimas e cantam.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Este habitar em mim...

Habito dentro de mim
E vejo-me fora de mim.
Não sei ser, sem não ser.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Rita Grácio:


a Fernando Pessoa


aniversário


ofereceram-me um peixe no dia dos meus anos
‘eu era uma algibeira cosida pela humidade da casa antiga
duas semanas depois
o peixe vem à superfície para conhecer um mundo não aquático
‘onde permanece
a medusa é bela e ri
perdoaram-me a sua morte
‘sem autópsia
o que não se perdoa a uma mulher
dois pontos
‘as rugas imprópriasdemulher
‘as vestes imprópriasdemulher
‘os modos imprópriosdemulher
‘a letra gatafunhada a pôr grelado na direiteza das linhas das folhas
‘os palavrões em público e as desarrumações em privado
‘o laqueamento voluntário das portas
‘e os demais prefixos que negam the-woman-by-the-book
[como elamesma-e-outras-tantas-
i l h a s
amamentam o sono
depois das gárgulas

terça-feira, 18 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


O verde e o azul do mar e os filósofos franceses

Verdes as ondas
onde o mar é azul.
O que diria um filósofo francês?
Faria doutrina que é cinzento;
que o mar é pós-moderno.
E nós? Nós os que
não somos franceses, nem philosophes?
Ficamos calados.
No mar habitam o verde e o azul.
O lixo que tem, esse é pós-moderno.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Namibiano Ferreira, "roubada" do seu blog http://poesiangolana.blogspot.co.uk/

BEIJOS PARA DINAH

Abelhas zumbindo,
corolas e pétalas dançando.
Aromas e amoras,
a brisa lá fora perfumando
e o lençol de linho,
luminária da manhã,
é vitral e rubi
espargindo lábios
doces, tintos de romã.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:

Eu

Que vozes desconhecidas
cantam em mim?
Que dedos sombrios
escrevem os meus versos?
Quantas pessoas me habitam?
Só eu me pertenço
e canto nas manhãs obscuras.
De mim apenas se sabe que sou eu.

António Eduardo Lico



Uma poesia de José Carlos Sant Anna, "roubado" do seu blog http://duvidasaquilinas.blogspot.co.uk/:

Como se eu respirasse o teu corpo

como a tua babucha me excita
quando danças no meio da sala,
menina das pernas roliças!

quantas vezes! eu perdi a conta
e também o sono
na malícia do teu sangue


porque nenhum elfo sabe
quando range o meu dorso
ou ruge o teu corpo


e na boca fechada com o dedo
me pedes para manter o segredo
entre os lençóis amassados


nenhum elfo sabe
quando a Ibéria de Albéniz eclipsa a noite,
ou Paco de Lucia encordoa a sua lira


enquanto juntos afogamos as canções
em contrações ritmadas

nenhum elfo esconde
quando a seiva sobe como um espumante
e nenhum outro rumor abafa os gemidos

alcançando a pele que se arrepia
na ânsia da língua convulsa

domingo, 16 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Soneto da manhã obscura

Procuro da manhã o doce orvalho
Com que possa matar a minha sede
Que da infinita noite procede
Como secreto porto onde encalho

Oh gnóstica manhã onde eu talho
O que a minha boca não me pede
E nem o deus antigo intercede
E faz macio o chão em que batalho

Oh noite portentosa e magnífica
Ardes e consomes-te como sonho
Que cada manhã em vão certifica

No meu canto agudo e medonho
Que de ser vão mas claro, dulcifica
O fresco orvalho que me imponho

António Eduardo Lico
Uma poesia de João Guimarães:

O cristo que tinha um quisto

e eis que Ele começa a drenar
com ranho de ovo no céu escalfado
escalfoda-se e um ramo de margaridas podres
de boas e bêbados estamos nós a arrotar!
e molhos de poemas despenteados com piolhos míopes
e brócolos centípedes com caspa e cheiro a
Sovaco Silva a mendigar painéis insulares
e pais nossos ao som de diarreia de porcelana reciclável
penicos ecológicos e escatológicas de poupança genética
e juro transplanetário enxertado em cactos alcoólicos
e bonecas manetas engravatadas por imbecilidade terminal.
Ao longe gritos de merda amorangada que o eco agasalhou.

sábado, 15 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Secreta dorme no seu casulo...

Secreta, dorme no seu casulo
um sono suspenso, a crisálida.
Se Darwin te visse!
Se um criacionista, ou mesmo dois,
pudessem penetrar o teu sono!
Até um adepto de Lamarck
poderia investigar o teu caso!
Não queria falar em Lamarck...
Já sei que me vão falar em Lysenko.
Trofim Lysenko para ser quase exacto.
Tinha mais um nome, mas não vou usá-lo.
Quero apenas ser quase exacto.
A exactidão aprende-se, não está na genética.
É isso, Lysenko não queria a genética;
e detestou Mendel; Mendel apreciava ervilhas,
era austríaco, e sem o saber originou a genética:
é o que muitos afirmam; Mendel, nunca soube
que tinha fundado alguma coisa.
Os que dizem que fundou alguma coisa,
sem o saberem, ou os que depois
inventaram o termo GENÉTICA,
talvez apenas gostem de ervilhas!
Lysenko...não se sabe o que originou!
Pelo menos não o sabem os que o criticam
e apenas dizem que o malvado Lysenko
não queria a genética.
Lysenko não queria Mendel e não queria
ervilhas, nem flores de ervilhas
Indiferente aos meus versos,
aos que trucidam Lysenko em manuais
que apenas são conhecidos no corredor
do Departamento dos autores,
a crisálida dorme sem saber que dorme;
dorme um sono frio e distante.
Dorme e não sonha, nem sabe
que dorme para acordar para a luz.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Teresa Fonseca:

      Quando as palavras são borboletas a sugar sais minerais dos ossos…
                                     às vezes os frutos delas são vagas de asas a bater
                                                                                                   indefesas
                                                                                às vezes são colhidas
                                                                                                   pela vida
                                                                                                     da boca
                                                                                           em ritmo forte

                                                  quando a boca é um bico de filtro eficaz
                                                          as palavras soltam-se do ciclo letal
                                                                                    comem e defecam
                                                                                  ora a sopa nutritiva
                                                                                ora o líquido venoso
                                                                                                     vão ser

                                                                                               as palavras

                                                                                      solta-se o alarme
                                            os cangalheiros das palavras vão a caminho
                                                                                                          elas
                                                                            são a morte encontrada
e sabem que não é preciso ter pressa porque com a dignidade da caçada
                                     se tornarão lentamente necrófagas como abutres

                            são vespas grandes a embater nos vidros transparentes
                                                                                   e nós do outro lado
                                                                                                asfixiamos
                                                                     com a protecção dos veados
                                                                                                  na cabeça
                                                          e as palavras a zumbir como vespas
                                                                                                      grandes
      e a entrarem-nos pelo nariz pela boca pelos pêlos pelos poros da pele
                                                                           num zumbido rizomático
                                                                                                comem-nos
                                                                                              defecam-nos
                                                                                                 as palavras
                                                                      e nós do outro lado do vidro

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Geografias

Escrevi uns versos em que falava
de oceanos tristes.
Os oceanos não são tristes; nem alegres.
São oceanos quando uns senhores
a que chamam geógrafos
decidem que são oceanos.
E decidem que são apenas oceanos; nem tristes, nem alegres.
Se eu escrevesse um verso assim:
“Oh taciturno Atlântico Oceano”.
Teria por certo exegetas, que iriam falar
de uma certa tendência classicista
nos meus versos; talvez até digam que eu estudei Latim...
Teria legiões de geógrafos a reclamarem
em cenáculos nacionais, internacionais e transnacionais
que de oceanos só eles podem falar.
Que nunca foi encontrado um oceano taciturno.
Eu não sou contra os geógrafos.
Devia haver muitos geógrafos. Milhões de geógrafos.
Tinham emprego garantido
A ensinar Geografia aos gringos.
O Mar Negro, é Mar Negro;
se fosse taciturno, ou fosse
outra coisa qualquer,
certamente estaria irritado com os geógrafos.
Os Mares também se irritam?
Porque é apenas Mar Negro
E não Oceano Negro?
Só os geógrafos o sabem.
Eu regresso à Água.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Emiliana Cruz:

escamas


e se os passos abafam o silêncio
e se o espelho engole a cobra

escamas espalhadas
recolhem as escadas de vidro
cuspindo os passos de sossego

e se o rasgo do vidro – poder ser o espelho íntimo
e se a vontade de engolir o espelho – na escada – onde o sentido se erige
se prendem na pele muda,

passos de cobra
deglutidos pelo espelho

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Tuve amor y tengo honor.
Esto es cuanto sé de mi.

(Calderón De La Barca)


Um poema stalinista

Velhos (e novos) trotskistas
gritam com vozes aflautadas
que os stalinistas são muito maus.
Jovens intelectuais trotskistas
sonham, em segredo ser possuídas
por velhos e empedernidos stalinistas.
Os velhos (e novos) trotskistas
gritam sempre com vozes aflautadas,
e gostam de fingir que sabem tudo.
Até fingem que sabem geografia!
Um velho trotskista, Wolfowitz,
(não faltará quem diga que é novo)
mais polaco que americano, contudo americano,
(os polacos gostam de ser americanos),
Que o diga Brzezinski!
Dizia (Wolfowitz): eu sei onde é o Afeganistão!
O Afeganistão é a nossa geografia,
Queremos o Indo Kush! E a Ásia Central!
Ungiu de trotskismo, Cheney e Rumsfeld.
Bush não fui ungido.
Foi ungido noutra internacional;
Escapou por pouco à unção de Wolfowitz.
Verão como a Babilónia
faz parte da mossa geografia,
eu sou Nabucodonosor,
e vou reconstruir os jardins suspensos
e vou tornar trostkista o Afeganistão,
clamava com voz de Quarta Internacional!
Alexandre, O Grande Alexandre
Devia ignorar por completo
Os delicados meandros da Revolução Permanente,
E deve ser um dos precursores do stalinismo;
para além de tudo, venceu no Indo Kush.
Genghis Khan, esse soldado alado da estepe
devia ser completamente ignorante
das magnas assembleias da Quarta Internacional
e dos intelectuais de barbichas e óculos,
pois venceu no Afeganistão, e chegou à Hungria;
o que diria Lukacs se fosse vivo!
O que diriam os velhos e graves filósofos,
Perceptores de Alexandre?
Vou deixar a gravidade destes versos
e vou fazer como os velhos poetas:
cantar as flores, o vinho, e as mulheres:
com o tempo, escolho a ordem certa.

Uma poesia de Jorge Barbosa:


POEMA DO MAR

O drama do Mar,
O desassossego domar,
                         sempre
                         sempre
                        dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossa Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
Roncando nas areias das nossas praias,
Batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão Poe estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!

O Mar!
Saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
Histórias da baleia que uma vez virou canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres,
nos portos estrangeiros...

O Mar!
dentro de nós todos,
no canto da Morna,*
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

Este convite de toda a hora
que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


(A rosa de Hiroxima

..mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa

Vinicius de Moraes)


Caía do céu, calmamente, segura num paraquedas,
para se fazer rosa mais abaixo.
Ilha de Hondo, delta do rio Ota, Hiroshima!
Sem que o soubesse, Hiroxima, iria render-se
a uma metálica flor que descia do céu
e o seu nome ficaria para sempre escrito
a fogo em todas as flores.
Ai rosa de Hiroxima, rosa de ferro,
rosa sem perfume e sem pétalas,
só nascida em Hiroxima,
como se esperasses por um jardim
em que a chuva é de ruína
e te faz nascer cinzas em vez de pétalas.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Ramos Rosa:


Os anjos que conheço são de erva e de silêncio

Os anjos que conheço são de erva e de silêncio
nalgum jardim de tarde. Mas quais os mais ardentes?
Feitos de mar e sol, elevam-se nas ondas,
entre as mulheres de coxas tão fortes como touros

O meu luto é de mesas e de bandeiras sem paz
É estar sem corpo à espera, inconsolada boca,
o fogo ateia o peito, a cabeça perde a fronte,
o vazio rodopia, é o celeste inferno.

Desço ainda um degrau com o anjo infernal,
um turbilhão de ervas, um redemoinho de sangue
Quem me vale agora se perdi o meu cavalo?

terça-feira, 11 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


El misterioso Ocidente de Castilla

Castilla y su acidente menor, el altiplano;
algunos prefieren decir
que Castilla es el altiplano.
Si, que el mayor acidente de Castilla
es cuando se acaba el altiplano.
Ah, Castilla, te vuelves sin geografia?
Yo sé, te hace falta Portugal y su famosa gente;
son 89.000 Km quadrados de geografia
que puedes mirar de tus alturas.
Tu luna es la luna castellana
y cuando pasa la frontera
luego vuelve portuguesa
es la luna portuguesa
asi, es la geografia, y la luna
también pasa la raya.
Lunita rayana de todas las noches,
Escondida, pasas la raya
E luego eres portuguesa.
Lunita rayana, olvida Castilla
y da tu luz de plata
a su misterioso Ocidente.

António Eduardo Lico
Uma poesia de João Camilo:

QUE SE PASSA?

Claro que não, de maneira nenhuma.
Estava sentada ao meu lado, o desejo
agitava-lhe o ventre, ela semicerrava
os olhos. De maneira nenhuma, assim não,
ainda não. Debrucei-me sobre o seu rosto
e beijei-a. Pousei a cabeça no seu peito
e esperei pelas suas mãos. Continuava,
lento, a ir devagar ao encontro do desejo.
Não tinha pressa. Ela apertava-me
contra si silenciosamente, parecia
dormir e repousava o seu corpo como
se a morte ou uma hibernação o tivessem
ocupado. A televisão passava um filme
de John Ford. Ela ergueu-se subitamente,
afastou-me. Que se passa, perguntei-lhe,
surpreendido. Nada, respondeu ela, mas não é
o filme de John Ford que acaba de começar?
Não o quero perder. De acordo, pensei eu.
Levantei-me, fui sentar-me na cadeira do outro
lado da sala. Acendi um cigarro. Lá fora
caíra a noite há muito tempo. Mas quem
tinha vontade de pensar no que se passava
lá fora? Um filme de John Ford, repeti em voz
baixa. Apaguei o cigarro e concentrei-me
na aventura irreal, nas cores magníficas do deserto.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Ao amanhecer, o mar

Torrencial mar, esse, o Atlântico.
Está perdida essa tua rosa-dos-ventos
como gaivota adormecida na
espuma líquida da tua geografia.
O teu mais célebre náufrago,
esse do Restelo, o Velho,
voga como peixe triste
entre lânguidos corpos de sereias.
Já não tens navegadores
de olhar perdido no horizonte
que te procurem o Oriente e o Poente,
nem largam ténues barcas
para indagarem do Sul, a rosa
quente e promissora que ocultas,
Existes só e inexpugnável
roçando acidental praia
com a tua brilhante espuma
refulgindo de branco
no obscuro amanhecer
com que te cercam.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Rui Costa:

o pão

Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.

domingo, 9 de junho de 2013

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Une Voyage

Les violons

Ah, o teu nome é obscuro - Louis-Ferdinand Destouches,
então surge aquilo que te decifra e te consome – Celine.
Celine, eis o nome, alguns dirão até 666.

Crépuscule

Et ton Voyage au bout de la nuit?
Tu dizias que não eras um homem de ideias,
as ideias, estavam nos livros, volumes e volumes;
a ti só o estilo de interessava.
Tu étais un homme à style.
Não te perdoaram que tivesses escrito
O inesperado de Voyage au bout de la nuit,
Algo assim, só eles podiam fazer.
Adivinhaste, culpam-te dos Pamphlets;
culpam-te ainda mais dos Pamphlets,
e dizem a palavra definitiva: antisémite;
essa palavra com que exterminam
todos os que não gostam; e eles não gostam de muitos.
De mim, é difícil dizerem que sou um desses, vejamos:
Gosto dos Fenícios, eram semitas,
e se não eram deveriam ser.
Gosto do povo de Kem, eram os egípcios antigos,
e eram semitas genuínos, genuínos mesmo.
Gosto dos Camitas, e porque não dos Filisteus?
acaso não eram semitas? Dos da Babilónia
gosto também, e são semitas desde sempre;
hoje ninguém se lembra, mas eles podem esquecer-se;
e esqueceram-se, esqueceram-se.
Já vai longe a Suméria, diziam que vinham da Anatólia
(os Sumérios – claro)
e depois, a sua brilhante civilização
foi substituída por sucessores semitas.
Eles esquecem-se, e até dizem que a História começa
com a Suméria. Eles esquecem-se, esquecem-se.
Estão sempre a esquecer-se;
mesmo quando não se esquecem,
é porque se esqueceram.
Vejam bem, eu gosto dos Assírios!
Gosto até dos Hititas, mas esses não eram semitas,
mas gosto deles; vieram da Anatólia (o que não era longe)
e conquistaram o Egipto, conquistaram Kem.
Gosto dos Hebreus; os da Babilónia tinham
um nome pare eles: Habiru.
Freud, que de Viena antevia Moisés, o egípcio,
Não esqueceu o nome – Habiru.
Ah pensaram que me esqueci dos da Galileia?
Esses não eram Hebreus; eram Galileus
e a Galileia teve que ser conquistada;
tinha uma divindade rival da de Jerusalém.
Tu não sabias nada disto, sempre ignoraste
os ardis subtis da História e das estórias,
eras médico e eras styliste.

Finale

Louis-Ferdinand, (où Celine), écoutes moi bien !
Ainda procuram, ou vasculham,
talvez sejam apenas como os voyeurs,
apenas querem ver. Talvez pensem em Haia...
(projectivamente, bem entendido).
Écoutes! Eles procuram,
procuram as tuas últimas cartas,
não te querem publicar a ti,
querem interpretar as tuas últimas cartas;
parecem condenados à guilhotina,
esperando com angústia de condenados
o seu último e longo minuto,
esse antes do frio da lâmina.
Ahhhh, quiseram-te apenas médico,
e com absoluta assepsia
asseguraram-se disso mesmo!
Presumo que sorriste,
tu est un styliste.

António Eduardo Lico