Era tudo metafísica
Era tudo metafísica.
Diziam.
Diziam que Hölderlin
era vagamente louco,
e esqueciam que eram
loucamente vagos.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Diziam, vê lá tu, que
nem ligavas à metafísica,
diziam, caro Goethe,
que não entendiam
o teu atrevimento; sim,
o teu atrevimento
de fazeres uma teoria
em que gentilmente
rebatias e negavas
Newton; bem sei, Newton era inglês
e nem percebia nada de
metafísica, embora
fizesse por aparentar
ser um verdadeiro conhecedor.
Ficavam, e ainda ficam,
zangados com a tua Erotica Romana
e esse teu secreto
jeito de Mefistófeles.
Tu dizias que não eras
Mefistófeles, mas
ensinavas assim: tudo
o que existe merece
desaparecer.
Era o teu jeito íntimo
de seres o que dizias não ser.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Chamavas-te Vladimir,
Vladimir Maiakowski
diziam que eras gentil,
terno e frágil.
Eras gentil, terno e
frágil e forte.
Eles não queriam que
fosses forte.
Uma mulher bonita, de
odor suave
tornou-te frágil e
resolveste partir.
Nem te despediste, de
súbito deixaram de te ver.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Era mais conveniente
atribuir a tua partida
a um homem vagamente
chamado Estaline.
Era bem melhor assim:
mais um morto
na contabilidade de
Estaline. Ainda que vagamente.
Olha, meu caro
Maiakowski, se calhar
ainda estão a pensar
que devem atribuir a Estaline
a extinção dos
dinossáurios.
E vão dizer: que
crueldade! Estaline
nem quis saber que eram
répteis
e animais de sangue
frio.
Talvez até queiram
acusá-lo da queda do Império.
É isso, Estaline
estabeleceu-se nas fronteiras do Império,
estão enganados, não
era Átila, o Huno, nem Alarico,
O Visigodo, e todos os
outros Godos: era ele,
vagamente chamado
Estaline,
era ele que acossava as
doces Vestais.
Vão também dizer que
não sabia de Babilónia
isso, não sabia de
Babilónia a grande prostituta.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Era afinal um
ignorante. Quem não sabia
De Babilónia, a grande
prostituta?
Agora nas portas de Ur
há um homem
pendurado pelo pescoço.
Sim, nas portas de Ur.
Indica que Babilónia
era a grande prostituta
Já não tem jardins
suspensos, tem um homem,
tem homens suspensos
pelo pescoço nas portas de Ur.
Era tudo metafísica.
Diziam.
E sabes, um banqueiro,
disfarçado de académico.
Um homem, um homem de
nome Montefiore.
Não, não é
florentino, nem sequer siciliano.
É inglês, vulgarmente
inglês, vulgarmente
banqueiro disfarçado
de académico.
Escreveu um livro sobre
ti, quando eras homem crescido;
depois escreveu um
livro sobre ti, quando jovem..
Isso é mau presságio,
sabias? Negro augúrio, eu digo!
Não demora, ele vai
dizer, esse homem de nome Montefiore,
que é banqueiro
disfarçado de académico,
que nunca estiveste em
Ítaca, nunca estiveste
a bordo do Argos; nunca
foste Argonauta!
Vai dizer que não
sabias que Pitágoras
foi educado no Egipto,
e depois enviado
para a Grécia. Na
Grécia ele abria templos
e colocava na entrada:
Quem não é geómetra,
Não entre!
Ele, esse homem de nome
Montefiore
que é banqueiro
disfarçado de académico
vai dizer que tu não
sabias que Pitágoras
sabia fazer a
quadratura do círculo.
Não, eu não estou a
dizer que ele afirma
que não conheces o
teorema! Não me entendas mal!
Vão dizer que assim
não vale, assim não conta.
vão dizer que eras
inoxidável.
Sabes? Muitos poetas
gostam de usar a palavra
óxido nas suas
poesias; dizem que assim
podem pertencer a não
sei que escola, ou movimento.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Lembrei-me agora de ti.
Sabes, Mao Tse Tung?
Agora escondes-te, ou
escondem-te
sob uma espécie de
acordo ortográfico,
assim um acordo
ortográfico interno, só com validade na China.
Agora os chineses são
exportadores e exportaram um nome: Mao Zedong
Era tudo metafísica.
Diziam.
Já não sabiam que
mais crimes e mortes te atribuir.
Então disseram que
gostavas de te rodear de mulheres jovens.
Disseram que tinhas
mulheres demais.
Sabes, ainda te vão
acusar do rapto das Sabinas.
És outro candidato a
responsável pela queda do Império,
talvez te convertam no
candidato ideal
para explicarem a queda
do Império do Oriente.
Foste tu que chamaste
os turcos, meu velho?
Vão dizer que num
delírio de crueldade
chamaste vários
turcos: os Seldjúcidas
que prepararam o
terreno, e depois os Otomanos.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Matisse e Picasso
estavam em Paris.
Havia muita gente que
estava em New York.
em Chicago, em Los
Angeles: eram americanos.
Havia um americano,
dizem-me que era escritor:
O nome: Dwight
Macdonald. Escrevia, por consequência,
Pois dizem-me que era
escritor. Escrevia que a bomba atómica
era natural; era uma
consequência natural, uma banalidade
do estilo de vida
americano, como os automóveis, ou a fast food.
Depois havia também um
outro americano,
Este chamava-se Jackson
Pollock, dizem-me
que era
pintor.
assumi que
sendo pintor, pintava., pois é isso que fazem os pintores.
Era tudo
metafísica. Diziam.
Diziam que
esse Pollock iniciou uma revolução na pintura:
Era cheia
de automatismos, melhor era baseada em processos
automáticos, era arte
moderna, aquilo é que era arte moderna.
Diziam que era
expressionismo abstracto; eram alguns, esses
expressionistas,
esses abstractos, tinham que ser alguns;
se fossem
nenhuns, parecia mal; o que diriam as pessoas?
Eram
Pollock, Motherwell, De Kooning, Hofmann, Kline, havia outros.
A
América estava
cheia de expressionistas, e de abstractos,
que não eram
expressionistas, nem eram abstractos.
Eram pagos pelos
guerreiros da Guerra Fria, dava-lhes
(t)alento o dinheiro
sujo e secreto para conter
o grave perigo vermelho
que ameaçava a Velha Europa.
Jacques Duclos um dia
transportava pombas no seu automóvel.
Era um dia em que um
general americano chegava a Paris.
Não, esse general
americano não era expressionista,
nem sequer abstracto,
não gostava de pombas, era isso!
Prenderam Duclos,
ignora-se se prenderam as pombas.
Pablo Picasso, tu não
sabias, mas o Departamento de Estado
Até fez um informe
secreto sobre ti: eras vermelho.
Tinhas as huertas
de Valência na alma e a claridade
do sol valenciano no
pincel, e pintavas, e pintavas.
E seguias rojo
como era o Poente nas bandas de Valência
e denunciavas, com luz
e sombra, na tua pintura,
a matança na Coreia,
esse quadro expressionsita
e abstracto pintado
pelos american boys nas
longínquas paisagens
de arroz do Extremo Oriente.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Tu e Matisse estavam em
França, em Paris
eles eram
expressionistas e abstractos
vinham do outro lado do
Atlântico,
vinham das Montanhas
Rochosas e dos Apalaches,
vinham travestidos de
abstracção,
Edgar Hoover tinha
travestido toda a América
e ditava a última moda
em lingerie.
Eram meros instrumentos
de propaganda,
alguns deles bem
medíocres, agora génios promovidos.
Hoje, resta apenas a
cinza do mercado da arte
e a luz e as sombras
que traçaste na tela
Era tudo metafísica.
Diziam.
Pusemos Torquemada como
bispo de Roma
tantos bispos italianos
e por último um polaco – era demais!
Era tudo metafísica.
Diziam.
Valia mais Torquemada,
um espanhol que é alemão.
Os espanhóis sempre
tiveram uma política alemã
dizem muitos manuais de
História.
É sempre melhor ter
Torquemada em Roma
que ter uma sucursal em
Avignon
com um francês que só
gosta de Camembert
e pensa que o Champagne
é néctar dos deuses.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Não quero que me
acusem de ser metafísico,
calo-me com Torquemada.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Torquemada nunca foi a
Granada
nem conhece o Cante
Jondo.
Federico, a quem
chamavam Garcia Lorca
foi a Granada sem ir a
Granada.
E Granada chora a
ausência daquele
que nunca foi a
Granada.
Era tudo metafísica.
Diziam.
pinta
de rojo las naranjas
La
guitarra, como luna,
testigo
que los gitanos
velan
tu morada
en las
puertas de Granada.
Era tudo metafísica.
Diziam.
Nem eu vou falar de
petróleo,
ainda vão dizer que
sou bolchevista
e que não gosto das
sete irmãs,
talvez seja um
conspiracy theorist
ou um desses
metafísicos
que nem sequer é
afrancesado
e hesita se tem que
classificar Baudelaire,
modernista, antes dos
modernos,
simbolista sem
simbólica, ou apenas um poeta.
Era tudo metafísica.
Diziam.
António Eduardo Lico
admirável mundo louco!
ResponderEliminar" Só sei que nada sei" (Sócrates) ...que segundo consta não deixou nada escrito.
É tudo metafísica!
Gostei!
Um abraço
Obrigado minha amiga.
EliminarUm abraço,
Obrigado pela visita e comentário.
ResponderEliminarAbraço.
Ena, António! Este é um autêntico manifesto político em verso!
ResponderEliminarE tão poucos se lembram que Estaline foi, ao pé de Hitler, um assassino de massas ainda mais temível...
Beijinhos
Obrigado Lou.
EliminarNão sei se é um manifesto político; sei que é poesia, mas a matéria da poesia está no cruzamento da realidade com a personalidade do poeta.
No que a mim respeita, sou stalinista, tout court.
Bom fim de semana Lou.
Beijos