terça-feira, 30 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Nas águas fitava-se Narciso

Solitário em si mesmo, por isso, belo
Narciso fitava-se nas águas.
E de Eco já não ouvia a última palavra,
mortalmente ferido de si próprio
era já a flor na memória
das palavras na pedra.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Helvécio Goulart:

PALÁCIOS

Alguém tirara o mundo do bolso do colete
E ficava a mostrá-lo aos que passavam
Um corvo veio vindo e pousou em seu ombro
Na hora das pessoas se beijarem na boca
Se amarem no asfalto nos telhados nas esquinas
Nos becos nas árvores nas águas de peixes inebriados
Alguém tirara o mundo de dentro de seu bolso
De um bolso enorme onde cabiam todos
As viúvas dos assassinados
Os que morriam sempre os que sempre matavam
Também os loucos os palhaços
Da cidade do país da terra inteira
Todos verdes da grama dos palácios
Das casas senhoriais em que moram as vespas as cobras as aranhas
Os pobres elefantes dos circos de arrabalde

E era assim que tinha de ser dizia-se
Tinha de ser assim para que morresse
A última esperança para que morresse

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


De madrugada as lembranças ardem

No meu quarto estou só
e comigo ardem apenas lembranças.
o meu quarto é frio
e fica azul nas madrugadas.
A muda Lara, no seu silêncio de deusa
abraça-me com os seus cabelos.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Alejandra Pizarnik:

MADRUGADA

Desnudo soñando una noche solar.
He yacido días animales.
El viento y la lluvia me borraron
como a un fuego, como a un poema
escrito en un muro.

domingo, 28 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Baladilla de la fuente fria que perdió la agua

En la fuente fria
me lavo las penas
y el bien que yo queria
me decia cosas buenas

fuente fria del camiñero
donde está tu agua?
Fuente clara del ayer
dáme un clavel
para prender en mi boca

Tu agua, liquido corcel
galopando con palomas
que ya no la pueden beber

Fuente fria del camiñero
donde está tu agua?
Que me arde una flor
en mi boca

En la fuente fria
me lavo las penas
y el bien que yo queria
me decia cosas buenas

António Eduardo Lico

António Fernandes dos Santos, conhecido pelo nome artístico de Tóssan, foi ilustrador, pintor, cenógrafo, vitralista, gráfico, humorista, poeta e um admirável contador de histórias.
Natural de Vila Real de Santo António, Algarve faleceu em Lisboa em 1991.
Deixo a poesia Ode ao futebol:

ODE AO FUTEBOL

Rectângulo verde, meio de sombra meio de sol
Vinte e dois em cuecas jogando futebol
Correndo, saltando, ziguezagueando ao som dum apito
Um homem magrito, também em cuecas
E mais dois carecas com uma bandeira
De cá para lá, de lá para cá
Bola ao centro, bola fora.
Fora o árbitro!
E a multidão, lá do peão
Gritava, berrava, gesticulava
E a bola coitada, rolava no verde
Rolava no pé, de cabeça em cabeça
A bola não perde, um minuto sequer
Zumbindo no ar como um besoiro,
Toda redonda, toda bonita
Vestida de coiro.
O árbitro corre, o árbitro apita
O público grita
Gooooolllllooooo!
Bola nas redes
Laranjadas, pirolitos,
Asneiras, palavrões
Damas frenéticas, gordas esqueléticas
esganiçadas aos gritos.
Todos à uma, todos ao um
Ao árbitro roubam o apito
Entra a guarda, entra a polícia
Os cavalos a correr, os senhores a esconder
Uma cabeça aqui, um pé acolá
Ancas, coxas, pernas, pé,
Cabeças no chão, cabeças de cavalo,
Cavalos sem cabeça, com os pés no ar
Fez-se em montão multidão.
E uma dama excitada, que era casada
Com um marinheiro distraído,
No meio da bancada que estava à cunha,
Tirou-lhe um olho, com a própria unha!
À unha, à unha!
Ânimos ao alto!
E no fim, perdeu-se o campeonato!

sábado, 27 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Granada

Preciosa y suspensa en el aire
asi es Granada.
La Sierra Nevada te mira
y en su mirada van tus glorias antiguas.
Eres roja en Alhambra
y luego verde a la orija de tu Vega
donde el Geni el Darro y el Beiro
te dan su liquido beso.
Asi es Granada, y la Sierra Nevada
te lleva a sus cumbres
y las nieves se vuelven rojas.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Adrián Pérez Castillo:

Aquel octubre

Entonces, trajo octubre las primeras
sílabas del poema, los acordes
del viento que arrastraban la penumbra
de cada noche herida por el llanto
de las hojas sin brillo.
Sangraba el sentimiento con las huellas
de las canciones concluidas,
con el silencio hirsuto del camino
que se desvanecía ante los ojos;
era densa la niebla
como el dolor en las entrañas.
Fue trazando la tinta un surco
donde los versos desnudaban
la amargura, la pena con que el hombre
sentía aquel otoño, aquel octubre
con fragmentos de hollín en las palabras.
Entonces, fue brotando el sentimiento,
con el dolor de un corazón desnudo.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Os Faunos deixaram os jardins

Nos jardins das cidades não há Faunos
há flores, relvas, árvores,
por vezes melros,
e nenhuma ninfa.
Os deuses antigos
já não gostam dos jardins que lhes dão,
um a um, foram-se embora
e já não há Faunos nos jardins das cidades.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Franco Alexandre:

a rectidão da água; o crescimento

a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Faz hoje 39 anos, aconteceu o 25 de Abril. Era na época um jovem militar a cumprir o serviço militar obrigatório, e pude viver esses momentos intensos.
Saiu-me esta poesia, que integrarei no poemário Amanhecer obscuro:


Um Abril de Abril

 Em Abril, flores mil
Para explodirem
Com o orvalho das madrugadas
E pintarem a tristeza
Das cores que só as flores têm.
Georges, sabes, no meu país
Há tardes de Abril
Que parecem Agosto
E em Lisboa o Tejo
Esse eterno filho de Abril
Casa o seu azul baço
Com o fulgurante azul de céu
E ao longe formam
Uma só linha azul que marca Abril.
Georges, sabes, no meu país
Há flores que nascem antes do seu tempo
Como se quisessem
Vestir Abril de perfumes
E febril alegria
E as moças morenas
Cantam os hinos secretos
De todos os perfumes de Abril.
Sabes, Georges, no meu país
Abril só começa de madrugada
Como se quisesse nascer
do orvalho e tecido pelo
perfume das flores que no meu país
nascem antes do tempo.
Sabes Georges, no meu país
Abril só pode ser Abril.

António Eduardo Lico
25 se Abril Sempre!


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


A rosa nos lábios

Uma rosa nos lábios
que se desfolha pétala a pétala
desenhando o teu sorriso.

António Eduardo Lico
Uma poesia da poetisa moçambicana Noémia de Sousa:

Negra

 Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias...
Teus encantos profundos de Africa.
Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedas-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.
Em seus formais cantos rendilhados
foste tudo, negra...
menos tu.
E ainda bem.
Ainda bem que nos deixaram a nós,
do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma,
sofrimento,
a glória única e sentida de te cantar
com emoção verdadeira e radical,
a glória comovida de te cantar, toda amassada,
moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE




terça-feira, 23 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


Um Olhar Sobre a Chuva

Com olhar inexistente
olho a chuva que cai no chão
para além da vidraça

A chuva cai sempre com graça.
Vê-la através de uma janela
líquida e insubstancial

a chuva, substância imaterial
que está para além do olhar
e para além de todas as janelas.

Redondas, as gotas, são elas
que tecem a estranha harmonia
da música que tocas ao beijar o chão

para aquém da vidraça, em vão
tento adivinhar-te caindo
com olhar inexistente

António Eduardo Lico
Uma poesia de Teixeira de Pascoaes:


LXVII

Que saudades eu sinto desta flor,
Que vai murchar!
E desta gota de água e de esplendor,
Um pequenino mundo que é só mar.
E desta imagem que por mim passou
Misteriosamente.
E desta folha pálida e tremente
Que tombou...
Da voz do vento que me deixa mudo,
E deste meu espanto de criança.
Que saudades de tudo eu sinto, porque tudo
É feito de lembrança...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário O canto em mim:


O canto em mim

Canto como se fosse sempre noite
e as palavras como sombras
oráculos da voz. ausente.

O deus antigo murmura
e a música esvai-se
como se o canto fosse em mim.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Sebastião Alba:

CERTO DE QUE VOLTAS, CANÇÃO

Certo de que voltas, canção,
a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.

Sei, por sinais e anjos e desviados,
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.

Apenas flores, nem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.

Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.

domingo, 21 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Rosa Vermelha
(Homenagem a Rosa Luxemburgo, assassinada pelos social-democratas alemães)

Vermelha é a Rosa
e agora está ela
de vermelho tingida.
Não te queriam vermelha
nem te queriam Rosa
e te quiseram sem perfume.
De Eros recebeste o silêncio
que a rosa esconde.
Emergiste na espuma das águas,
as pétalas numa concha
e eras vermelha, como uma Rosa.

António Eduardo Lico
Um excerto do Sentimento de um Ocidental de Cesário Verde:


O Sentimento dum Ocidental


            I

 Avé-Maria

 Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

 O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

 Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

 Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

 Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

 E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

 E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

 Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

 Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

 Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

 Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!


sábado, 20 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


O Tic Tac dos Relógios é melancólico

Melancólico, o tic tac dos relógios,
de todos os relógios.
Inesgotável como o tempo,
empresta-lhe o som
como se quisera fazer música
como a faz um metrómeno.
Melancólico, apenas lhe marca o ritmo
as notas são tocadas pela vida.
Melancólico, o tic tac dos relógios,
de todos os relógios.

António Eduardo Lico
Uma cantiga de amigo do trovador João Zorro, provavelmente contemporâneo de D. Dinis:

Per ribeira do rio

Per ribeira do rio
vi remar o navio
e sabor hei da ribeira.

Per ribeira do alto
vi remar o barco
e sabor hei da ribeira.

Vi remar o navio,
i vai o meu amigo
e sabor hei da ribeira.

Vi remar o barco,
i vai o meu amado
e sabor hei da ribeira.

I vai o meu amigo,
quer-me levar consigo
e sabor hei da ribeira.

I vai o meu amado,
quer-me levar de grado
e sabor hei da ribeira.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Vértice

No vértice que te desenha e coroa
nasce o rio, que impetuoso
esboça meandros no meu peito.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Manuel Maria Barbosa du Bocage:

A Rosa

Tu, flor de Vénus,
Corada Rosa,
Leda, fragrante,
Pura, mimosa,

Tu, que envergonhas
As outras flores,
Tens menos graça
Que os meus amores.

Tanto ao diurno
Sol coruscante
Cede a nocturna
Lua inconstante,

Quanto a Marília
Té na pureza
Tu, que és o mimo
Da Natureza.

O buliçoso,
Cândido Amor
Pôs-lhe nas faces
Mais viva cor;

Tu tens agudos
Cruéis espinhos,
Ela suaves
Brandos carinhos;

Tu não percebes
Ternos desejos,
Em vão Favónio
Te dá mil beijos.

Marília bela
Sente, respira,
Meus doces versos
Ouve, e suspira.

A mãe das flores,
A Primavera,
Fica vaidosa
Quando te gera;

Porém Marília
No mago riso
Traz as delícias
Do Paraíso.

Amor que diga
Qual é mais bela,
Qual é mais pura,
Se tu, ou ela;

Que diga Vénus...
Ela aí vem...
Ai! Enganei-me,
Que é o meu bem.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Your Silence...

Your silence, as a rose on your lips
keeps the flavour of the petals.
And when the Spring returns
the petals will open the silence
as a rose on your lips.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Eduardo Pitta:

Perseguem-me fantasmas
de outros tempos.

Árvores despidas
que o horizonte plúmbeo
ajudou a recortar
com uma nitidez
de pesadelo.

E tudo agora me diz
dos tempos em que
menino
me deleitava no estalar
de folhas em carne viva.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Que de dentro não se vê

Há mil anos um velho sábio
contavas histórias
apenas quando o entardecer
se prolongava como
planície na geometria
que vai do ocidente ao oriente.
Disse planura, geometria?
O entardecer não tem geometria
de tão ser pitagórico.
A sua planura esvai-se nos
purpúreos redondos delírios
do sol, esse fabricante fictício
e abstracto de entardeceres.
No entardecer melancólico,
há mil anos,
o velho sábio contava
histórias ao entardecer.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Thiago de Mello:

Madrugada camponesa

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite
a manhã já vai chegar.
Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar solidão
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.
Breve há de ser
sinto no ar
tempo de trigo maduro
vai ser tempo de ceifar
Já se levantam prodígios
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão
um leite novo minando
no meu longe seringal.
Madrugada da esperança
já é quase tempo de amor
colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana
minha alma no seu pendão.


terça-feira, 16 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Vegetalmente

A areia ondula o deserto
vegetalmente, como se guardasse
toda a secura na sua memória de pedra.

Vegetalmente, a mineral areia,
aguarda pelas futuras florestas
e cada grão rola como se fosse verde.

A memória do verde escreve a vento
em cada grão de areia, vegetalmente,
a água que vai brotar, clara e fresca.

Como se no seu líquido ventre
grão a grão, todas as flores
fossem a areia, vegetalmente.

António Eduardo Lico  
Uma poesia de Valter Hugo Mãe:

o homem que já não sou

não me olhes agora que estou
mais velho e não correspondo em
nada ao homem que
amaste, procura encarar a tristeza
sem me incluíres, seria demasiado
cruel que me usasses para a
dor. para ti
quis trazer as coisas mais belas
e em tudo o que fiz pus o
cuidado meticuloso de quem
ama. não me obrigues a cortar os
pulsos quando fores num minuto ao
jardim com o cão

esta noite, sem notares, sustive a
respiração e quase morri. não deste
por nada. julgaste que voltei a
ressonar e até terás esboçado um
sorriso. e se eu pudesse morrer
enquanto sorris, pergunto

deixo para depois, ou talvez
desista. mas não pode ser se
tu me olhares em busca de tudo o que
já não existe. não pode ser, levo a
faca maior para debaixo do meu
travesseiro, juro-te que me
mato se continuares assim

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


PPC, ou a balada de todos os bancários a que muitos chamam políticos

PPC, seja, Pedro Passos Coelho
não usa chapéu de feltro
nem conhece a estética do canto dos
canários e não distingue
um checo de um eslovaco.
Usa um pequeno rectângulo
na lapela: via-se numa foto de jornal.
Olhando com atenção, lá está:
é a bandeira de Portugal.
De uma só vez e num gesto
a la Georges Bush, PPC pendura o País.
PPC não sabe onde fica
o Forte de S.João Baptista de Ajudá
e pensa que Porto Seguro fica
onde fica o dito Partido Socialista.
PPC é bancário; bancário de um só sentido:
só recebe, e quer receber mais, e não pagar.
PPC aderiu a uma moda antiga:
políticos são todos bancários.
Trabalham para os banqueiros,
nem que tenham que usar na lapela,
bandeiras e fingirem que são inteligentes, diligentes
e piedosos. Não desisto de ver PPC
fazer versos ao padre Américo
e fazer lobbying pela santidade de Cavaco Silva,
também ele um devotado bancário.
PPC é contabilisticamente ininputável
e faz balancetes com talões do BPN nas horas de ócio.
PPC, oficia o seu múnus como um Cardeal clandestino
saído, não de refinados salões florentinos,
ordenado como foi na jsd, e com o secreto
sonho de ser canonizado pela troika
e venerado para todo o sempre
nos santuários que vão de Bruxelas a Berlim e a Washington.

António Eduardo Lico
Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Troubadours de todo o Sul


Ai, las! tan cuidava saber
d’amor, e tan petit en sai!
Car eu d’amar no.m posc tener
celeis don já pro non aurai”.

BERNART DE VENTADORN


As cansos que do Sul dolente
nos traziam o fin’amor
e um temps novel
jazem em brancos areais da memória
tão brancos como só o Sul pode ser;
tão brancos como o lume da tua luz Oh Sul!
Busca a tua verde lenha perdida Oh Sul!
E acende o lume que ainda te arde
na tua rosa intacta.
Volta canso no previsto Inverno
E traz de novo o canto da tua lauzeta
E o teu claro bosc para que nele cantem
todos os pássaros, os teus pássaros conhecidos
e os que há por inventar.
Que cantem de novo voltados para o teu Sul
essa clara latitude que te corta e queima;
geografia animal do teu instinto que traz a Primavera

António Eduardo Lico
Um soneto de António Ferreira (1528-1569)


Aquele claro Sol que me mostrava
O caminho do céu mais chão, mais certo.
E com seu novo raio ao longe, e ao perto
Toda a sombra mortal me afugentava,

Deixou a prisão triste, em que cá estava,
Eu fiquei cego, e só com passo incerto,
Perdido peregrino no deserto,
A que faltou a guia que o levava.
Assim com espírito triste, o juízo escuro,
Suas santas pisadas vou buscando,
Por vales, e por campos, e por montes.
Em toda parte a vejo, e a figuro.
Ela me toma a mão, e vai guiando.
E meus olhos a seguem feitos fontes.

domingo, 14 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Tristeza do silêncio da rosa

 A melancolia das tardes calmas
e outonais, em que gostamos
de ver cair, as folhas das árvores
no Outono, essa latitude em nós oblíqua,
que ignoto sábio, tristemente
descobriu, numa tarde calma e bucólica
quando o Outono era apenas Outono
e deixava cair suas folhas, amarelecidas
e pálidas da espera de caírem
esperando regressar na Primavera
esse chumbo róseo, primordial matéria
vegetalmente grave na própria Primavera
que não sabe que o Verão, esse obscuro
e terminal ser, teatralmente, já encenou
toda a geografia; ruborizando faces austeras
de sábios, que de tão ocultamente sábios,
não ousavam o sonho da rosa que era dada
no Espírito, e que pelo Espírito
regressava ao ouro que dela era.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Ramos Rosa

As estradas leves

As nuvens, não construídas, engendradas
no repouso, não ideias mas formas
que respiram e caminham e quase falam,
são a fluência de um princípio que não cessa
e tudo o que vai ser, na mais viva iminência.
Assim um deus criaria o espaço puro
no sopro do desejo,
avançando no silêncio como um barco.
Assim, não para construir, mas para abrir
através da sombra, através da cinza,
e para alé, das palavras, as portas indecisas
e que brilhem os signos e as figuras
indecifráveis.

sábado, 13 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


The Shadow of your perfume

The shadow of your perfume
as the falling leaves, in Autumn,
falls, yellow and dead, in my heart.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Gedeão:

Soneto

Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade

Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Possivelmente um rio

 Não que eu vos quisesse
dizer, as palavras que só
eu sei, na gramática
que  nunca quis saber -
receoso do advérbio, ao
adjectivo, temeroso.
Não que eu vos quisesse
contar, a semântica
da guitarra que toco, intangível
nos dicionários -
toscamente avaliável nas vielas, e que corre
em líquida substância
nas veias que me atravessam
nesse rio que eu quisesse...

António Eduardo Lico

Uma poesia de Sebastião Alba:

o limite diáfano

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Por sobre la llanura de Castilla

El ruiseñor desnuda en la madrugada su canto.

En la llanura de Castilla
solo hay plantado un cuchillo.

Ruiseñor que rompes la madrugada
con tu oscuro y límpido silbido,
como jinete rompiendo al viento.

Vierte tu canto como se fuera
un rio corriendo lleno de agua y flores
como se quisieras que todas las fuentes
fueran en la llanura de Castilla.

 Ruiseñor en que sueño dormen las flores
que tu canto procura?

En el llanura de Castilla
solo hay plantado un cuchillo.

António Eduardo Lico
José Afonso. Qualquer Dia



Uma poesia de Fernando Miguel Bernardes, que José Afonso musicou e cantou:

Qualquer dia

No inverno bato o queixo
sem mantas na manhã fria
No inverno bato o queixo
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno aperto o cinto
Enquanto o vento assobia.
No inverno aperto o cinto
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno vou pôr lume
Lenha verde não ardia.
No inverno vou pôr lume
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno penso muito
Oh que coisas eu já via
No inverno penso muito
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno ganhei ódio
E juro que o não queria
No inverno ganhei ódio
Qualquer dia
Qualquer dia.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Padington

At Padington, the train was a blue bird
flying on the grey walls.
The train whistle sounded,
hoarse and melancholy, leaving his steel cage.
At Padington, time stopped on the grey walls
and flew with the long good-bye of the blue bird.

António Eduardo Lico
Uma poesia do poeta cabo verdiano Filinto Elísio Correia e Silva:


ACERCA DO AMOR



Do amor só digo isto:

o sol adormece ao crepúsculo
no oferecido colo do poente
e nada é tão belo e íntimo,

0 resto é business dos amantes.
Dizê-lo seria fragmentar a lua inteira.
Uma poesia de Filinto Elísiso (1734-1819) nome literário de Francisco Manuel do Nascimento:

Ode à Esperança

1

Vem, vem, doce Esperança, único alívio
Desta alma lastimada;
Mostra, na c'roa, a flor da Amendoeira,
Que ao Lavrador previsto,
Da Primavera próxima dá novas.

2

Vem, vem, doce Esperança, tu que animas
Na escravidão pesada
O aflito prisioneiro: por ti canta,
Condenado ao trabalho,
Ao som da braga, que nos pés lhe soa,

3

Por ti veleja o pano da tormenta
O marcante afouto:
No mar largo, ao saudoso passageiro,
(Da sposa e dos filhinhos)
Tu lhe pintas a terra pelas nuvens.

4

Tu consolas no leito o lasso enfermo,
C'os ares da melhora,
Tu dás vivos clarões ao moribundo,
Nos já vidrados olhos,
Dos horizontes da Celeste Pátria.

5

Eu já fui de teus dons também mimoso;
A vida largos anos
Rebatida entre acerbos infortúnios
A sustentei robusta
Com os pomos de teus vergéis viçosos.

6

Mas agora, que Márcia vive ausente;
Que não me alenta esquiva
C'o brando mimo dum de seus agrados,
Que farei infelice,
Se tu, meiga Esperança, não me acodes?

7

Ai! que um de seus agrados é mais doce
Que o néctar saboroso;
É mais doce que os beijos requintados
Da namorada Vénus,
A que o Grego põe preço tão subido.

8

Vem, vem, doce Esperança, que eu prometo
Ornar os teus altares
Co'a viçosa verbena, que te agrada,
Co'a linda flor, que agora,
Enfeita os troncos, que te são sagrados.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Orquídea

Bela, a orquídea no orquidário.
Não sabe que é bela
e é feliz assim,
bela, sem saber que é bela
feliz sem saber que é feliz.
É bela a orquídea no orquidário
sem saber que está no orquidário.

As orquídeas que não estão no orquidário
não são belas. Não estão no orquidário,
não sabem que não estão no orquidário
e não são belas, nem sabem que não são belas.
E brincam de se colorirem de cores, indiferentes.
E brincam de se vestir com perfume, indiferentes.
E brincam de não saberem, nunca sabem,
que não estão no orquidário.
E brincam de serem belas, sem saber que não são belas
as orquídeas que não estão no orquidário.

As orquídeas foram criadas para os orquidários.
As outras orquídeas, as que não conhecem o orquidário
não são orquídeas, são apenas flores.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Antonio Gamoneda:

Ví lavandas sumergidas

Ví lavandas sumergidas en un cuenco de llanto y la visión ardió en mí.

Más allá de la lluvia ví serpientes enfermas -bellas en sus úlceras transparentes-, frutos amenazados por espinas y sombras, hierbas excitadas por el rocío. Ví un ruiseñor agonizante y su garganta llena de luz.

Estoy soñando la existencia y es un jardín torturado. Ante mí pasan madres encanecidas en el vértigo.

Mi pensamiento es anterior a la eternidad pero no hay eternidad. He gastado mi juventud ante una tumba vacía, me he extenuado en preguntas que aún percuten en mí como un caballo que galopase tristemente en la memoria.
Aún giro dentro de mí mismo aunque sé que voy a caer en el frío de mi propio corazón.

Así es la vejez: claridad sin descanso.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que dentro não se vê:


O vinho por sobre a rosa

Bebe o teu vinho
e como o persa longínquo
procura as rosas.
As que existem vermelhas nos lábios
e as que perfumam e dão cor ao vinho.
Colhe dos lábios a cor rubra
e do vinho o delicado perfume.
Só assim terás a tua rosa
e a tua eternidade.

António Eduardo Lico
Uma poesia do poeta mexicano Audomaro Ernesto (1983):

Carta a César Vallejo

Vine aquí
y me doy cuenta que la frialdad de los parisiens
es intraducible al calor de nosotros
hermano
Es raro que de todas las casas del mundo
hayas escogido ésta
En nuestros países aún florece la miseria
los cartoneros son dueños de las calles
y el progreso es promesa que aparece
en los diarios
Es raro César
que toda tu cólera sea ahora esta piedra
y que estos heraldos
bajen y se posen sobre tu silencio

Cuántos poemas tuyos no habrán escuchado estos árboles
cuántas cosas no le habrás dicho
a esta tierra gris y fría
Seguramente los otros te observan
cuando sales de tu muerte a caminar en harapos
Seguramente conocen tu poesía
y tú la de ellos

Recuerdo cuando eras tema de charla
y te maltratábamos sintiéndonos los mejores necrólogos
Hoy ante ti
el río que soy se desborda por los ojos
la misma agua que deseaste cuando no era tiempo de partir
Hoy el cielo tiene limpio el rostro
y lejos está aquel deseo tuyo

Pero si debo decir la verdad
si tengo que confesarte la razón
que me trajo hasta aquí
es para decirte que
yo nací no cuando Dios estuvo enfermo
sino el día que los ángeles y yo velamos su cadáver
(escritura hospital de enunciados)
Recuérdalo querido César
toda tu muerte,

domingo, 7 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


No Alto da Montanha, com vinho, entre flores, olhando a lua (Homenagem a Li Bai)

Comoveste os deuses com a tua poesia,
o teu amigo Du Fu bem sabia.
Das flores caíram lágrimas de sede
quando a tua voz se calava.
Bebeste em todas as montanhas,
tu e a tua sombra, o vinho que a lua dava.
Quiseste da lua o líquido reflexo
no plácido fundo do lago.
Chang'e esperava-te e serviu-te vinho.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Federico Garcia Lorca:


SONETO GONGORINO EN QUE EL POETA
MANDA A SU AMOR UNA PALOMA


Este pichón del Turia que te mando,
de dulces ojos y de blanca pluma,
sobre laurel de Grecia vierte y suma
llama lenta de amor do estoy parando.
Su cándida virtud, su cuello blando,
en limo doble de caliente espuma,
con un temblor de escarcha, perla y bruma
la ausencia de tu boca está marcando.
Pasa la mano sobre su blancura
y verás qué nevada melodía
esparce en copos sobre tu hermosura.
Así mi corazón de noche y día,
preso en la cárcel del amor oscura,
llora sin verte su melancolía.

sábado, 6 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:



Na pedra Orfeu buscava encantamento

À pedra Orfeu pediu que sorrisse
e a sua dureza fosse mais suave.
Da lira o som regressava a Hades
e o triste pastor Aristeu
cumpria seu fado de seduzir Eurídice.
Da pedra Orfeu colheu a saudade
ou o ciúme, ou a dúvida de Eurídice
diluindo-se no ar

António Eduardo Lico
Uma poesia de João Cabral de Melo Neto>

Tecendo a Manhã

1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Lume

Lume, que no limiar do calor
tinges de púrpura
a lenha que de verde
e verde e verde, te vai gerar

António Eduardo Lico
Uma poesia de Francisco Rodrigues Lobo:

CANTIGA

Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com üa sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.

As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:



Mote para uma folha que caiu, amarela, de uma árvore

Porque era Outono, quiseste abandonar,
colorindo de amarelo o espaço por onde voavas,
o espaço verde e quente, onde a seiva te habitou

Porque era Outono, e quiseste voar
como se fora Primavera, como se fosses brincar
com a tua primaveril cor, beijando o chão

Porque era Outono, voavas ao vento
que te levava para longe e te enganava
com seu manso murmúrio

Porque era Outono, apenas Outono
e eras apenas uma folha amarela
mansamente caíste no chão

António Eduardo Lico
Uma poesia de Mário de Sá-Carneiro:

Apoteose

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
Dormindo fôgo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só móro...

São tristezas de bronze as que inda choro -
Pilastras mortas, marmores ao Poente...
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca óro...

Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...

Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquideas pranto...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Luna de Sevilla

La luna de Sevilla
cuando se mira en el Guadalquivir
se vuelve negra.

Que pena es tu pena
lunita negra de Sevilla?

En que piensas, lunita de Sevilla
cuando cobres con plata el puente de Triana?
El puente de Triana, esa de la frontera
entre el Kabir y Sevilla.
y donde Sevilla es solo un punto.

Al Mutamid se ha partido
lunita de Sevilla.
Su Taifa se perdió en el Kabir
Y su canto doloroso se vierte en el Magrib.

 Ay lunita de Sevilla
cuando te miras en el Guadalquivir
regressa Hércules y Sevilla
vuelve al medio dia.

Y la luna de Sevilla
Se mira en el Guadalquivir.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Tomaz Kim, nome literário de Joaquim Fernandes Tomaz Ribeiro-Grillo (1915-1967):

ELEGIA

O teu corpo,
uma vez o meu altar e pecado,
O teu corpo
agora amarelo e viscoso,
hostil como a freira enclausurada,
é uma forma obscena ao sol.

Tu estás morta –
tu, o meu pão e vinho santo!

Tu foste
a minha dor,
o sol
e a chuva;
Tu foste
saudade,
tudo
e desejo,
quando nós
sofrendo,
quando nós
encontramos
uma nova luz
uma nova fé!

Tu estás morta –
tu, o meu pão e vinho santo.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


Litania (levemente melancólica)

 O tempo desfaz-se e corre,
como areia no verde dos meus dedos.
Regressa sempre, verde, como
os meus olhos, que são castanhos
e nunca serão verdes.
O tempo nunca é verde
quando passa nos meus olhos
que não são verdes.
Verde é a palavra, as palavras
que digo, quando escrevo
e olho com os meus olhos
o verde insondável
dos meus olhos que não são verdes.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Domingos Monteiro:

No jardim a tarde esquece
Os longos dedos de infanta
Enquanto o repuxo canta
Há uma rosa que adormece

A esta hora tudo me espanta
Tudo, tudo me enternece
Enquanto o repuxo canta
E aquela rosa adormece.

Há feitios de sandálias
Na areia fina moldados
E eu curvo-me sobre as áleas
A beijar essas pisadas

E o repuxo canta, canta
Talvez tenha enlouquecido
A alma da água o levanta
Vai toda feita em ruído.

No jardim a tarde esquece
Seus dedos longos de infanta
Enquanto o repuxo canta
E aquela rosa adormece.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Reponho uma poesia do poemário Que de dentro não se vê:


La Siguiriya

La siguirya apunta el Sur.
El toque se firma, dolorido, al viento
con vierdes dedos de dolor.

La siguirya, arma del pueblo.
No por espadas, mas por sonido
arde en manos guitarreras..

Que duende sona en tus falsetas
seguirya que te vas al Sur?

António Eduardo Lico
Uma poesia de Ana Luísa Amaral:

Um Céu e Nada Mais

Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.