segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Bairro Negro de José Afonso:


Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Pequena melodia

Da palavra o som.
Do som a melodia.
Da melodia o poema.


Vuela la mariposa
La mariposa vuela.
Y rodopiando vuela la mariposa.
El Infinito es pequeño para tan breve vuelo.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Herberto Helder:

AS MUSAS CEGAS

V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.

Esta linguagem era o disposto verão das musas,
o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
- Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira. - Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto-
e doado às coisas mínimas.

Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.

Essa mulher cercou-me com as duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.

Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trêmulas
da carne,
tudo o que é úmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
- não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.

E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo
lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.

Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito

nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.

Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me; multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário este rio que corre sem águas:


Junto de um rio...o obituário das palavras...

Quem ousa calar os deuses
colocando-lhe na boca
palavras que não sabem?
Nadando rente à margem
o peixe, nem sabe
que existem palavras líquidas
que secam lábios
quando os percorrem.
Peixes e deuses
ignoram palavras;
mudos e perdidos
em líquidas moradas
vivem sós, sem esperar
uma só e desoladora
palavra.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Mário Cesariny:


voz numa pedra

Não adoro o passado
não sou três vezes mestre
não combinei nada com as furnas
não é para isso que eu cá ando
decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
nenhuma nenhuma palavra está completa
nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
assim também eu nunca te direi o que sei
a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento
Não digo como o outro: sei que não sei nada
sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
vaso de liberdade expurgada do menstruo
rosa viva diante dos nossos olhos
Ainda longe longe essa cidade futura
onde «a poesia não mais ritmará a acção
porque caminhará adiante dela»
Os pregadores de morte vão acabar?
Os segadores do amor vão acabar?
A tortura dos olhos vai acabar?
Passa-me então aquele canivete
porque há imenso que começar a podar
passa não me olhas como se olha um bruxo
detentor do milagre da verdade
a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma
nada está escrito afinal

sábado, 29 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Para aprender a matar deuses...
  
As impetuosas palavras
que se desenham
para matar deuses
que renascem a cada morte!

Podiam não renascer
e ficar na sombra ténue
dos muitos paraísos que existem,
inertes e de barba por fazer

Renascem porque
as teologias assim o querem;
para serem teologias

Convenientes para todos,
já mortas quando nascem
mas que dão nascimento

Aos deuses que queremos
matar, ás dezenas, milhares
como se rejeitássemos
as nossas criações

Só fica o poema
ou as palavras
com que criamos os deuses
que a seguir matamos

António Eduardo Lico
Uma poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen:

Quando eu morrer voltarei para buscar
.
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Não consta que Zeus fosse versado em gramática...

Não consta que Zeus fosse versado em gramática
e em Roma quis ser conhecido como Júpiter,
quase como se fosse a quarta geração olímpica.
A gramática não é atributo divino.
Como ficas bem pairando sobre o Coliseu
hesitante entre Homero e Virgílio
e Afrodite banhando-se feliz no Tibre
ignorando que já era Vénus.
O enigmático Eneias, esse de Tróia
que a Musa quis de Roma fundador
e viajante teleológico, guiado por experimentado aedo
que já te conhecia o destino.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Ana Paula Inácio:

Amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em código toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma páginadescobrirei alguma pista.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Este rio que corre sem águas

 Zeus era lúcido?
Ninguém acredita,
senão não seria uma divindade.
Quem, a não ser um louco
pode assumir a divindade?
Eu não a assumiria;
humildemente aceito
ter demasiada lucidez
e acreditar que os rios correm sem águas,
como o Caos corre sem matéria,
basta-lhe a Noite para correr
até que Céu e Terra se encontrem.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Pires Cabral:

DEFEITO DE FABRICO

Quando nasci, trazia de origem
um farol que despejava luz a jorros
sobre o que quer que fosse,
mormente sobre as dobras
pérfidas da noite.

Mas, por estranho que pareça,
também os faróis estão sujeitos
às leis da erosão,

e o meu farol deliu-se. Hoje não é
mais do que um triste farolim de bicicleta
que apenas me alumia dois palmos de noite.

Amanhã estará reduzido
a uma simples lanterna de bolso
com que mal poderei reconhecer
o lugar onde estou.

Até que um dia será, está bom de ver,
o mais fiável cúmplice da noite –

– da noite que devia dissipar,
e não fundir-se nela.

Defeito de fabrico.
Mas a garantia caducou e o fabricante
nega-se a ressarcir-me do escuro.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Caligrafia

 A minha caligrafia íntima
nunca escreveu versos
metafísicos.
Seguramente, filósofos
com vocação de estetas
e que sempre seguram candeias
e vestem mantos verdes
dirão detectar pequenas
partículas esotéricas
na caligrafia que vos apresento.
E assim sendo, está provado
quanticamente.
A minha letra mais íntima
não a escrevo; desenho-a
no ar; espero que caia
mansamente e se desvaneça
sem metafísica.

António Eduardo Lico
Uma poesia do heterónimo Alberto Caeiro:


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Vintage Porto

Ah o vinho que corre no Douro
filosófico na sua melancolia rubra
não tem margens definidas
e corre para mares ignorados.
Rubro, como convém,
desafia químicas antigas
e gota a gota, indiferente,
tinge o rio de invisível vermelho.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Ana Salomé:

ODE CESARINY


Para todos os que amam como a estrada começa.
queria de ti um país
um arco de sol para brincar nas manhãs
a roda das tuas mãos na cintura
engravidando de deslumbre
e a urdidura dos filhos
para além da alegria.
queria que entumecesses o tempo
dentro de maçãs relidas
em poemas sobre a mesa.
no teu jeito de apertares os lábios
e me fechares numa sílaba
queria de nós um país
juntando-se a outro.
compor o tratado dos nossos beijos
na morfologia das estrelas
que encimam esta solidão
faz-me querer de ti
se não um país o coração
da tua cidade
coisa tanta e pouca
alguma coisa só
um beijo talvez
que retenha a bruma
de avançar sobre Portugal
e me tome de vez
o destino por invisível.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Balada de Outono de José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Perfumes tangentes ao vinho

 Vem de tão longe quanto os perfumes
e de tão fundo como corolas.
Abrasa-me o sangue nas veias
tinge-me os ossos de cor rubi:
vinho! Fonte de todas as flores

António Eduardo Lico
Uma poesia de Cristina Nery:


entre os figos que arqueiam
e a negra crista de um capricórnio morto e
uma lua cega um plátano rosa
e um pavão em mosaico.

tenho os pulmões como varais de sal
que os guizos perfumam o meu cérebro
sob a abóbada de um punhal
e os ombros em azeite.

que um pássaro me embriague o coração de flautas
e uma fabulosa palavra se as primaveras
e uma cotovia magnífica
e um sudário.
e uma ilha em laranja onde os peixes brancos
querem o cenário das cerejas e os hinos aquáticos do mel.

que eu vista para sempre uma cidade
as taças de espuma e floridos príncipes
porque ardem as roseiras na língua
e um nadador nocturno dourado.

um coral de mosto púrpura para vestíbulo
das minhas sementes húmidas
e as borboletas sumptuosas.


nas órbitas de unguento
borboletas sumptuosas derramam
e a possessiva cabeça de um rio
e uma noite de liras graves
e raízes de garganta.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Alvaro Aroso, José Paulo em guitarra portuguesa de Coimbra e Eduardo Aroso na viola, interpretam Variações em Lá menor de João Bagão.



Votos de um Feliz Natal  e um Ano Novo com tudo o que é devido e que faz a felicidade das pessoas, para os meus leitores e leitoras, e todos aqueles que de algum modo visitam o meu blog.
Se me fosse possível um desejo, seria o de que no novo ano que se aproxima, se dissolvessem no ar os banqueiros mais os seus criados, a que costumamos chamar políticos.

António Eduardo Lico
Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Nas margens, a Esfinge...

A Esfinge habita as margens
apenas como esfinge, de pedra,
absurdamente de pedra
impenetrável ao silêncio
que lhe vem de fora;
e vive, no entanto
em total mudez, na pedra
que lhe é externa,
só, contemplativa,
fazendo do tempo pedra,
só nas margens, sem esperar nada.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Catarina Nunes de Almeida:

Certamente uma palavra
Não é um lugar habitável.
Se procurares dentro de uma palavra
Verás a morte como ela não foi.
Talvez nas artérias encontres ainda
Correntes salinas
Um silêncio salino
Mas nunca a insónia fresca
Os estuários do sangue alagados
Navegados
Sem peso algum.
Não procures
Tu sabes
O poema é água
Indiferente aos teus dedos.

(Do livro A metamorfose da planta dos pés, 2008)

sábado, 22 de dezembro de 2012

Elegia, poema de Luís Andrade, música e canto José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Os rios sem águas são misteriosos


O láudano que corre como um rio
nos Hinos à Noite, subtil
e fino no traço que desenha.
Deuses loucos dançam na roleta
um pas de deux com Dostoiewski
e orvalhos cintilantes de luz
dançavam no eterno copo de vinho
que Hafez erguia na mão
como se fora uma rosa.
Regresso para dentro de mim mesmo
como rio que corre sem águas.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Jorge Sousa Braga:

Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante
D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns eletrochoques e está a recuperar
aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiros dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
como me pude eu apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário O esboço do vento:


Epifania do vinho

 Sorrio e bebo o meu vinho
Como música de Dionísio
O mosto agita a memória

E a divindade volta em glória
Rubra e doce sobre o meu corpo
Abrupta a cada gota de vinho

Sobre as flores que adivinho
Brotando do vinho generosas
E quentes de fugazes perfumes

António Eduardo Lico
Uma poesia de Jorge Sousa Braga:

CARTA DE AMOR (1981)

A Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade
Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Adriano Correia de Oliveira canta Pátria, com poema de António Ferreira Guedes e música de António Portugal:



Reponho uma poesia do poemário O esboço do vento:


Alquimia da Madrugada

Orvalho nasce na madrugada
mágica Obra que desvanece
de cor o ouro prometido

Da rosa nasce todo o sentido
espelho da lua, água celeste
apodrecida mas sempre pura

Sal subtil que o tempo apura
Oh muda madrugada secreta
Guarda a indizível matéria

António Eduardo Lico
Uma poesia de Fiama Hasse Pais Brandão:

Verso Vão

Onda de sol, verso de ouro,
perífrase vã. Extasiar-me,
antes, por esta fusão,
mistura de brilhos. Ou, ainda
mais íntima, a consciência
extensa como o céu, o corpo de tudo,
semelhança absoluta. Respirar
na quebra da onda. Na água,
uma braçada lenta
até ao limite de mim.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário O esboço do vento:


À tarde a melancolia escorre...

À tarde a melancolia escorre
como seiva de árvores mortas
e das flores que hão de nascer

Primavera e o sol a morrer
como música no horizonte
que vai morrendo todas as tardes

E nas guitarras que escutardes,
nos violoncelos que tocam breve
a tensa seiva tece a noite

António Eduardo Lico
Uma Cantiga de Amor de D. Dinis:

Quer'eu em maneira de proençal
fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.

Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.

Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Poesia de Luís Andrade, música de José Afonso, canta José Afonso: Era de noite e levaram:


Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


De madrugada os rios...

No pino da madrugada uma
só fonte te cobria de rosas
e rios nasciam-te nos olhos

Ao ritmo de antigos orvalhos
chorados por deuses destronados
a cada florida Primavera

Como se em Abril não chovera
e toda a sede desse em água
mansa e azul de melancolia

António Eduardo Lico
Uma poesia de Fernando Assis Pacheco:

SEM QUE SOUBESSES

Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando, sem que soubesses, por tudo o que fazias.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

De José Afonso Ronda dos Paisanos:


Uma poesia do poemário The sentiment of a poet:


The sentiment of a poet

A poet drinks on the street
and millions of stars died
empty of their liquid fire.
Suddenly just a comet,
just one comet on the sky.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Ramos Rosa:

Que cor ó telhados de miséria

Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?

Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijamos
nunca parti

Não sei que idade tenho

Quando havia antes um antigamente
havia uma esperança
agora no próprio coração da ilusão
onde a água limpa as pedras das ruínas
entre destroços límpidos
deito-me sobre a minha sombra e durmo
e durmo

Quando havia antes um amanhecer
à beira do abismo
agora no próprio coração do coração
durmo estrangulando um monstro inerme
um palhaço de palha seca e pálido
quando havia antes um caminho

Não houve nunca amigos nem, pureza
Nem carinhos de mãe salvam a noite
É preciso ir mais longe na incerteza
É preciso no silêncio não escutar

A manhã que eu procuro não foi sonhada
Uma árvore me ignora na raiz
Perfeitamente desesperado é o meu sonho
Os pássaros insultam-me na cama
Só com doidos com doidos amaria
perfeitamente presente na frescura
do mar

Uma casa para eu ter a humildade de ser espaço
a líquida frescura duma jarra
um passo leve e certo em cada sombra
um ninho em cada ouvido
de doces abelhas cegas

Uma casa uma caixa de música e sossego
Um violão adormecido na doçura
Um mar longínquo à volta atrás do campo
Uma inundação de verdura e espessa paz
Uma repetida e vasta constelação de grilos
e os galos álacres do silêncio

Um mar de espuma e alegria obscura
um mar de espuma e alegria clara
entre o verde e a brisa

Na brancura dos quartos
a inocência poderá sonhar desnuda
os insetos poderão entrar
juntamente com as plantas e as aves
Uma longa asa passará
O mundo e o silêncio a mesma ave
e o mar
o mudo leão longínquo e fresco
faiscará entre o ver e as lâminas solares

domingo, 16 de dezembro de 2012

Na Fonte Está Lianor de Luís de Camões, musicado e cantado por José Afonso:




Uma poesia do poemário The sentiment of a poet:


A poem without whitewash

Here is the poem:
don’t ask me to use whitewash;
I carefully avoid that word
to avoid something I have to avoid:
aesthetic and all related products.

Mr Brown ignores all about
the use of whitewash in poetry
and judge Larkin as misogynistic
and wants to submit to x ray the Movement
to find Englishness and expose it.
Don’t be astonished if Mr Brown
states he read William Carlos William
in a course on Gaelic Literature.
Mr Brown hasn’t ever known Jupiter,
even he thinks he lives at Olympus
and ministers comes from his thigh

I interrupt myself!

here is the poem:
don’t ask me to use whitewash
and Mr Brown; at least simultaneously

António Eduardo Lico
Um soneto de Boccacio:

Fuggano i sospir miei, fuggasi il pianto...

Fuggano i sospir miei, fuggasi il pianto,
fugga l'angoscia e fuggasi el disio
che auto ho di morir; vada in oblio
ciò che contra ad Amor già pensai tanto;

torni la festa, torni el riso e 'l canto,
torni gli onor devuti al signor mio,
li meriti del qual han fatto ch'io
aggia la grazia bramata cotanto.

Lo sdegno, el qual a torto me negava
el vago sguardo degli occhi lucenti,
coi qual Amor mi prese, è tolto via;

e quel saluto, ch'io più desiava,
con umil voce e con atti piacenti
pur testé mi rendé la donna mia.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Um soneto do poeta do Piaui Francisco Miguel de Moura:

A Partida

Na partida, os adeuses, gume e corte
dos prazeres do amor, quanto tormento!
Cada qual que demonstre quanto é forte,
lábios secos mordendo o sentimento.

Do ser brotam soluços a toda hora,
as faces no calor do perdimento,
olhos no chão, no ar, por dentro e fora,
pedem forças aos céus como alimento.

Ninguém vai, ninguém fica, e se reparte
no transporte que liga e que desliga!
Confusão de saber quem fica ou parte.

Não se explica tamanha intensidade
amarga, e doce, e errante, que interliga
os corações perdidos de saudade.
Natal dos simples de José Afonso:


Uma poesia do poemário The sentiment of a poet:


Never use the word dragon in a poem

Dragon is an horrific word to use in a poem.
I use it because I’m writing it
writing it, I’m using it
if I wasn’t using it, I wasn’t writing it
and dragons couldn’t exist in my poem.
I shouldn’t use the word “because”…
See, “dragon” and “because” in a poem…
I know what you all are thinking:
I should express like that:
voyons “dragon” and “because” in a poem…
and even worse I used the word “if”.
Don’t believe I am a esthete
or should I write aesthete?
Whatever I am, I write words, however
I’m not the sophist so much waited.
Silence is my speech, is my dragon,
a word I should avoid in a poem.
Never use the word dragon in a poem;
if use it, you have to write it,
and after? Your fate is becoming an aesthete
what inconvenient! Someone can think
you want to be the next Canterbury Archbishop.
Voyons a dragon or a Canterbury Archbishop
Are not enough esoteric to be on a poem;
If they are aesthetic examples, it is because
one is dragon the other archbishop
and both are unreal in a poem.
I didn’t wanted to finish in a sophistic mood,
this poem was intended to be lyric.

António Eduardo Lico

Uma poesia de Eugénio de Andrade:

Labirinto ou Alguns Lugares de Amor

O outono
por assim dizer
              pois era verão
forrado de agulhas

a cal
rumorosa
do sol dos cardos

sem outras mãos que lentas barcas
vai-se aproximando a água

a nudez do vidro
a luz
a prumo dos mastros

os prados matinais
os pés
verdes quase

o brilho
das magnólias
apertado nos dentes

uma espécie de tumulto
as unhas
tão fatigadas dos dedos

o bosque abre-se beijo a beijo
                              e é branco

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Uma posesia do poemário The sentiment of a poet:


Poets like to talk about shepherds

 Give me flowers
give me wine
give me women
and I will transform worlds,
galaxies, the universe curvature,
and I will find a solution
for the Zenon paradox.

I know, as if was the fate,
I have to sing shepherds
even without a pastoral flute.

Far way, Vergilius, watches over
his shepherds, and the poets.
Maybe from an anonymous epicurean eye
shepherds will be born again, and poets
can rest in peace.

António Eduardo Lico
Um soneto de Luís de Camões:


Tomou-me vossa vista soberana

Tomou-me vossa vista soberana
Aonde tinha as armas mais à mão,
Por mostrar que quem busca defensão
Contra esses belos olhos, que se engana.
Por ficar da vitória mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão;
Cuidei de me salvar, mas foi em vão,
Que contra o Céu não vale defensa humana.
Mas porém, se vos tinha prometido
O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.
Que posto que estivesse apercebido,
Não levais de vencer-me grande glória;
Maior a levo eu de ser vencido.
Uma homenagem a Luis Gonzaga. Caso ainda fosse vivo teria 100 anos.
Mas temos as suas músicas que não morrem. Pau de arara é a música que escolho para homenagear o grande Luis Gonzaga:


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma poesia do poemário The sentiment of a poet:


To Walt Whitman

As a god before the gods and Olympus,
almost before the Logos
your word full of vegetable blood
drew leaves and chants
on desolated lands.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Jaime Cortesão. Trata-se de uma poesia feita nos anos 30 sobre Jaime Rebelo, pescador e militante anarco-sindicalista. Preso e sobre tortura, cortou a língua para não falar. Jaime Cortesão fez em sua homenagem esta poesia:



Romance do Homem da Boca Fechada

- Quem é esse homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
– Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar,
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.
Ora ouvireis, camaradas,
Uma história de pasmar.

Passava já de ano e dia
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite, luta bravia,
Pois só ama a Liberdade,
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia…
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.

Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar
- Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal, hás de contá-lo,
- Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé: não falo!
- Fala: ou terás o degredo,
Ou morte a fio de espada.
- Mais vale morrer com honra,
Do que vida deshonrada!

- A ver se falas ou não,
Quando posto na tortura.
- Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!

Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
- Antes que fale emudeça! -
Pôs-se a gritar com voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.

A turba vil dos esbirros
Ficou na frente, assombrada,
Já da boca não saia
Mais que espuma ensanguentada!

Salazar, cuidas que o Povo
Te suporta, quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!

Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Canção do Mar de José Afonso:


Uma poesia do poemário The sentiment of a poet:


Long life to the Berlin Wall

Berlin Wall was a wall
with stones and cement;
now is dust and minerals
and a famous scholar swears
that Mr. Brown has a piece
between his office and the Parliament.
One day an american geographer
visited Berlin – his name J.F. Kennedy.
“Ich bin ein Berliner!” he told the crowd.
The crowd, thinking he was converting
to a grammarian, applauded.
This is the Berlin Wall history.
the one which can be stated in a poem.
All the rest is dust and minerals.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Manuel Alegre:

Aicha Conticha

A armada deixa Arzila. Sobre as naus
Brilham uma última vez as armas portuguesas
Quando os moiros chegarem verão apenas
Uma mulher de negro pelas ruas
Não resta mais de Portugal, só este luto
Na cidade deserta e abandonada.

Talvez um amor antigo ou um morto querido
Talvez a luz, o branco, o sul,
Talvez o puro prazer de olhar.
Outros amaram Arzila mas não tanto
Que tivessem de ficar só por amor.
Ela só quiz Arzila por Arzila.

Os moiros lhe chamarão Aicha Conticha
E enquanto a armada se despede lentamente
Ela só é senhora da cidade.

De negro está vestida
Ela só na cidade abandonada

E nunca mais Arzila será perdida
E nunca mais Arzila será tomada.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Moda do Entrudo, canção popular da Beira Baixa cantada por José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


As rosas que não existem...

As rosas que não existem
são as melhores!
Terão todos os odores
e todas as cores.
O seu perfume inexistente
perder-se-à ao longe, puro
e jamais será desvendado.

António Eduardo Lico
Um soneto de José Régio de 1969. Escrito durante a vigència da ditadura do chamado Estado Novo, e manifestamente contra o su máximo reresentante, Oliveira Salazar, nem por isso perdeu actualidade; apenas os figurantes precisam ser mudados:


Soneto quase inédito

Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento
E o Decreto da fome é publicado.

Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.

E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,

Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos - só! - por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Mais uma canção popular da beira Baixa cantada por José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Soneto da guitarra e da rosa

A guitarra, com ser madeiro oco
Espalha a sua canção dolente;
Das cordas o som é uma torrente
Como se fora duende barroco

A rosa é guitarra que invoco
Cada entardecer ao sol poente;
Harmónico o perfume nascente,
Ao sul destes dedos com que te toco

Na rosa há melodias serenas
Pela guitarra galopam volúpias
E de súbito nascem cantilenas

E na guitarra nascem utopias
Quando nas rosas vemos açucenas
E levantamos do som as mãos ímpias

António Eduardo Lico

Uma poesia de António Maria Lisboa:



As formas, as sombras, a luz descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento


e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era o que me lembro
da cor do jardim

domingo, 9 de dezembro de 2012

Senhora do Almortão, canção popular da Beira Baixa cantada por José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Dê amor...uma rosa

Dê amor aos amantes uma faca
Para que cortem rosas e o tédio
E do amor provem doce remédio
Que só da rosa o perfume aplaca

Se Cupido aos amantes afraca
Da maior fortaleza é prelúdio
É o frio que se torna incêndio
É como o vento que a rosa ataca

Rouba dela o suave aroma
E joga de suave jardineiro
Suspenso em secreto idioma

Voa e é como alado barqueiro
Que voando, brusco, dos céus assoma
E planta a rosa como luzeiro

António Eduardo Lico
Uma poesia de António José Forte:


Reservado ao Veneno

Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras

Para uma breve biografia de António José Forte consultar o link:

sábado, 8 de dezembro de 2012

Uma canção popular da Beira Baixa cantada por José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Sete pétalas de rosa de Baco a Dionísio

De Baco a rosa jorra como vinho;
é de mosto esta rosa, ou esta máscara
que te revela: um dia Dionísio,
no outro Baco curado por Cibele.
Foste o único filho de uma mortal
nascido com destino de ser deus.
Quando eras Dionísio, Ninfas e Horas
cuidaram-te a tua divindade.
Baco, ou Dionísio, que importa?
São sete pétalas escondidas
que velam o teu nome.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Botto da sua obra poética Canções:

Se Fosses Luz

Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!
- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água - música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Bailan las gitanas,
míralas el rey;
la reina, con celos,
mándalas prender.

(Miguel de Cervantes)

Baila gitana, baila y vuela al cielo
Con tus rosas en tus labios
y manzanas en tus ojos.
Que todos miren tus cabellos al viento
y tu cuerpo de mariposa, suelto
en los olivares verdes y oscuros

António Eduardo Lico
Uma poesia de Fernando Grade:

NATAL

Hoje nasceu um poeta
no escuro da minha rua
Cresceu fez-se homem
apagou o sol
e bateu na lua

Amanhã será tão nutrido
que tremem as balanças de esquina
sentido o ranger de sapatos
os seus passos não beatos
Amanhã será tão angélico
que os anjos ruins ou não
sentem a inveja nascer
sob a membrana da fala

vendo voar rente aos astros
esse poeta maldito
sem carne nem abraços
abaixo os sexos e a lua
hoje nascido aqui
do ventre mais volumoso
da virgem da minha rua

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Sete pétalas de rosa de Baco a Dionísio

De Baco a rosa jorra como vinho;
é de mosto esta rosa, ou esta máscara
que te revela: um dia Dionísio,
no outro Baco curado por Cibele.
Foste o único filho de uma mortal
nascido com destino de ser deus.
Quando eras Dionísio, Ninfas e Horas
cuidaram-te a tua divindade.
Baco, ou Dionísio, que importa?
São sete pétalas escondidas
que velam o teu nome.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Manuel da Fonseca:

Tejo Que Levas as Águas

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes espantos
de roubos, fomes, terrores,
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amores

Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas

Lava bancos e empresas
dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza
arrecadam lucro inteiro

Lava palácios vivendas
casebres bairros da lata
leva negócios e rendas
que a uns farta e a outros mata

Lava avenidas de vícios
vielas de amores venais
lava albergues e hospícios
cadeias e hospitais

Afoga empenhos favores
vãs glórias, ocas palmas
leva o poder dos senhores
que compram corpos e almas

Das camas de amor comprado
desata abraços de lodo
rostos corpos destroçados
lava-os com sal e iodo

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


La dulce lágrima y la rosa

Dulce cae la lágrima dolorida
Amarga y tan llena de perfumes
Como si de los ojos te esfumes
Como se fueras rosa colorida

Como se fueras la agua florida
Que pura en los huertos te consumes
Y siempre corriendo nunca te sumes
Clara y breve y tan indefinida

Ay lágrima dolorida y breve
Vuelas por los aires oh flor hermosa
En tu loco sueño de aguanieve

El ruiseñor te canta dolorosa
En la noche, blanca, honda y leve
Y tu fugaz silueta de diosa

António Eduardo Lico
Um soneto de Manuel Maria Barbosa du Bocage:


Liberdade, onde estás? Quem te demora

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não Caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?

Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!

Eia! Acode ao mortal, que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.

Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemaŕio A rosa é a via:


Se houvera uma rosa em Gaza...

Quantas rosas nascem
nos olhos das tuas crianças?
São jardins os olhos
das tuas crianças, Gaza?
A tua terra, Gaza,
é de ferro e é de fósforo.
Gaza, não és Sodoma, nem Gomorra,
porque que te cai fogo dos céus?
Gaza, um dia, quando
todos os profetas partirem para longe
vou ver nascer rosas nas tuas oliveiras.

António Eduardo Lico
Uma poesia de António Gedeão:

Lágrima de preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


As rosas são breves

É breve a rosa,
todas as rosas são breves;
quatro letras de perfumes
que te consomem e sagram.
Apenas tenho rosa, esta palavra,
para cantar a tua brevidade

António Eduardo Lico
Uma poesia de Manuel Alegre (Praça da Canção):

LIBERDADE

Sobre esta página escrevo
teu nome que no peito trago escrito
laranja verde limão
amargo e doce o teu nome.

Sobre esta página escrevo
o teu nome de muitos nomes feito água e fogo lenha vento
primavera pátria exílio.

Teu nome onde exilado habito e canto mais do que nome: navio
onde já fui marinheiro
naufragado no teu nome.

Sobre esta página escrevo o teu nome: tempestade.
E mais do que nome: sangue. Amor e morte. Navio.Esta chama ateada no meu peito
por quem morro por quem vivo este nome rosa e cardo
por quen livre sou cativo.

Sobre esta página escrevo o
teu nome: liberdade.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Uma canção de José Afonso, poema de Paulo Armando, música e voz José Afonso:


Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Cobre-me o corpo com rosas
Quando eu estiver no caixão,
Das mais lindas e viçosas,
Põe-mas sobre o coração.

(Poeta popular
Manuel da Silva Varejota, sitio dos Funchais,
freguesia de Querença, conselho de Loulé.)

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
e ser-lhe o coração e o viço
e o alimento obscuro.

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
todas as rosas, como se jardim fosse
e tivesse todas as rosas em mim.

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
e as rosas fossem em mim
vida e morte, lenha e fogo.

Se o meu corpo pudesse cobrir as rosas
e ser como as rosas – o silêncio
ou o segredo de se morrer quando se abre.

António Eduardo Lico
Um soneto de Camões:


O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo à sua vida,
Harmonia maior, com voz sentida,
Levanta pela praia inabitada.

Deseja lograr vida prolongada,
E dela está chorando a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.

Assim, Senhora minha, quando eu via
O triste fim que davam meus amores,
Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave acento de harmonia
Descantei pelos vossos desfavores
La vuestra falsa fe y el amor mio.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Reponho uma poesia do poemário A rosa é a via:


Uma flor na névoa

Eras névoa quando nas manhãs
estendias, preguiçosa, as tuas pétalas.
Entre luz e sombra, entre noite e dia
eras fronteira invisível, um só ponto
de névoa imprecisa e tangível perfume
que esperava o meio-dia.

António Eduardo Lico
Canção da Ribeirinha ou Cantiga da Garvaia de Paio Soares de Taveirós, trovador da primeira metade do séc. XII. Durante muito tempo esta composição gozou do estatuto da mais antiga composição poética em galaico-português, perdendo esse estatuto para uma composição do trovador João Soares de Paiva:

No mundo nom me sei parelha,
mentre me for como me vai;
ca ja moiro por vós, e ai!,
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia?
Mao dia me levantei,
que vos entom nom vi feia!

E, mia senhor, des aquelha,
me foi a mi mui mal di' ai!
E vós, filha de Dom Pai
Moniz, en bem vos semelha
d' haver eu por vós garvaia?
Pois eu, mia senhor, d' alfaia
nunca de vós houve nem hei
valia d'ua correia!

Uma transcrição (de entre muitas possíveis) para português actual:

No mundo não conheço outro como eu,
enquanto me acontecer como me acontece:
porque já morro por vós, e ai!,
minha senhora branca e vermelha,
quereis que vos censure
quando vos eu vi em saia? (em corpo bem feito)
Mau dia me levantei
que vos então não vi feia!

E, minha senhora, desde então,
passei muitos maus dias, ai!
E vós, filha de D. Paio
Moniz, parece-vos bem
ter eu de vós uma garvaia? (manto)
Pois eu, minha senhora, de presente
nunca de vós tive nem tenho
nem a mais pequenina coisa.