domingo, 6 de outubro de 2013

Uma poesia do poeta e tradutor Filinto Elísio (1734-1819) de seu nome Francisco Manuel do Nascimento.
Filinto Elísio foi o nome literário que lhe atribuiu a Marquesa de Alorna de quem ele tinha sido professor de Latim.
Pertenceu à Sociedade Literária Ribeira das Naus. Faleceu em Paris onde estava exilado devido a perseguição da Inquisição.

Ode à Esperança

1

Vem, vem, doce Esperança, único alívio
Desta alma lastimada;
Mostra, na c'roa, a flor da Amendoeira,
Que ao Lavrador previsto,
Da Primavera próxima dá novas.

2

Vem, vem, doce Esperança, tu que animas
Na escravidão pesada
O aflito prisioneiro: por ti canta,
Condenado ao trabalho,
Ao som da braga, que nos pés lhe soa,

3

Por ti veleja o pano da tormenta
O marcante afouto:
No mar largo, ao saudoso passageiro,
(Da sposa e dos filhinhos)
Tu lhe pintas a terra pelas nuvens.

4

Tu consolas no leito o lasso enfermo,
C'os ares da melhora,
Tu dás vivos clarões ao moribundo,
Nos já vidrados olhos,
Dos horizontes da Celeste Pátria.

5

Eu já fui de teus dons também mimoso;
A vida largos anos
Rebatida entre acerbos infortúnios
A sustentei robusta
Com os pomos de teus vergéis viçosos.

6

Mas agora, que Márcia vive ausente;
Que não me alenta esquiva
C'o brando mimo dum de seus agrados,
Que farei infelice,
Se tu, meiga Esperança, não me acodes?

7

Ai! que um de seus agrados é mais doce
Que o néctar saboroso;
É mais doce que os beijos requintados
Da namorada Vénus,
A que o Grego põe preço tão subido.

8

Vem, vem, doce Esperança, que eu prometo
Ornar os teus altares
Co'a viçosa verbena, que te agrada,
Co'a linda flor, que agora,
Enfeita os troncos, que te são sagrados.
Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Fonte dos desejos


Havia uma fonte.
E havia a sede.
Havia o desejo.

Inútil


Inútil e fermosa.
A lágrima de cristal.
Cai e seca.

António Eduardo Lico


sábado, 5 de outubro de 2013

Uma poesia do poeta Árcade Paulino António Cabral, mais conhecido por Abade de Jazente (1719-1789), a que muitos atribuem este soneto,  embora também seja atribuída a Bocage:

Soneto da da Dama cagando

Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Porém o ver cagar a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!

Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta d'amores de alimpadura
Serviu àquela parte malcheirosa:

Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito d'amor que lisonjeiro
Afetos move, corações incita:

Para o ir ver servir de reposteiro
À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!
Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Blues


Não era azul.
Apenas quisera ser azul.
Quisera apenas ser mar.

Calor


Como o calor que derrete a neve.
O teu sorriso era fugaz.
E voava leve, tão leve.

António Eduardo Lico


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Uma poesia de Afonso X, O Sábio:

Non quer'eu donzela fea

Non quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea
e negra come carvón,
que ant'a mia porta pea
nen faça come sisón.
Non quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea
e velosa come can,
que ant'a mia porta pea
nen faça come alermã.
Non quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea
que ha brancos os cabelos,
que ant'a mia porta pea
nen faça come camelos.
Non quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Non quer'eu donzela fea,
velha de maa coor,
que ant'a mia porta pea
nen me faça i peior
Non quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.
Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:

Pequena lágrima

A lágrima melancólica.
Era seiva de flor.
Aroma de fruto.


Enigmática


Enigmática, no sol.
Eras na praia.
Apenas murmúrio do mar.

António Eduardo Lico

sábado, 28 de setembro de 2013

Uma redondilha de Camões:

MOTE

Descalça vai pera a fonte
Lianor, pela verdura;
vai fermosa e não segura.

VOLTA

Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
cabelos d' ouro o trançado,
fita de cor d' encarnado...
Tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.
Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:

Cantiga Secreta


De secreto nome havia uma flor.
E era também um rio e melodia.
E era breve, tão breve.


Mar ou Oceano, ou apenas água



No oceano triste, as velas se alevantaram.
Descuidadas sereias inundam o convés.
Havia só a água, e a espuma.


António Eduardo Lico


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Uma poesia de Raquel Nobre Guerra:


BÍLIS NEGRA

aqui morro muitos anos convosco
estremecendo à sabedoria dos tolos
aqui certo clima de nojo e uma galeria viva
de absurdos para a visão integral da coisa
solene
peçam-se óculos para ver melhor, peçam-se janelas
para ver o mar
eu estarei certa à chuva própria desse estado
adequada e a direito despejando-me aqui
chamo a minha mãe ao corpo, não tenho nada
preparado, tenho um telegrama visual e chamo
alto e chego para provar que este mote é só um meio
de porte
há-de encastelar em areia o finalismo rente aos dedos
subir-me à boca subir em bando à do louco onde
terei posto a minha
e aí na ervinha de um passeio restar
à perseguição da luz como um animal deslumbrado
que atravessou
Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Cantiga de Verão


Inocente é o Verão.
Que de verde ondula searas.
E habita, pleno, as rosas breves.


Calor

Era o calor, esse abismo.
Que te mordia as veias.
Era o Verão que te anunciava.

António Eduardo Lico

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Uma poesia do grande poeta António Ramos Rosa, falecido recentemente e cujo funeral se realizou hoje.
António Ramos Rosa é um dos poetas que mais admiro.

Estar Só é Estar no Íntimo do Mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo



Após férias e outros afazeres de natureza pessoal, vou retomar aos poucos a minha actividade no blog.
Retomo o fio da meada, repondo duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:


Cantilena do vinho e da rosa


O vinho é como a rosa.
Rubro é o seu perfume.
Secreta é a sua flor.


Pequena música

Era apenas melodia.
Apenas voo de pássaro.
Era apenas o meio-dia.

António Eduardo Lico

domingo, 4 de agosto de 2013

Férias

Em virtude das tradicionais Férias  não tenho tanto tempo para actualizar o blog.
Desejo a todos os leitores e leitoras do meu  espaço  bons momentos. 

terça-feira, 30 de julho de 2013

Esta brevidade das palavras

Reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:

Quase

Quase o mar, quase um navio.
Quase névoa, quase lágrima.
Quase perdido, o teu olhar, na lonjura.


Pequena canção para uma sombra

Era uma sombra, um sorriso.
Era redonda a lágrima.
Que esculpia melancolia no meu rosto.

António Eduardo Lico
José Afonso canta Jorge de Sena - Epígrafe para a arte de furtar:

Epígrafe para a arte de furtar

Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?

roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?

sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
- todos me roubam

roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui d'El Rei


segunda-feira, 29 de julho de 2013

Esta brevidade das palavras

reponho duas poesias do poemário Esta brevidade das palavras:

Pequena melodia

Da palavra o som.
Do som a melodia.
Da melodia o poema.


Vuela la mariposa

La mariposa vuela.
Y rodopiando vuela la mariposa.
El Infinito es pequeño para tan breve vuelo.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Gastão Cruz:

Realidade

Os factos
são o espelho as coisas mostram-
-se atravessadas pelos rios
do som A poesia
quebra o vidro do dia como duma
cratera a voz do fogo lança
os jactos

domingo, 28 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Deuses num quarto escuro

Um quarto, as roupas da cama
tangentes ao sonho e deuses
antigos e modernos que se fazem
a si mesmos como sombras
chinesas, aladas, na sua
vertigem de divindade.
Moscas picam-nos em vão,
Indiferentes, os deuses,
antigos e modernos
buscam apenas ser sombras
na sombra das paredes

de um quarto escuro.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Helder Macedo:

CRUCIFICAÇÃO

O que ofereces não chega.
Tua vontade tem o teu tamanho]
e o corpo que lhe dás é o teu corpo
meu corpo anterior que me usurpaste.
Nem o reino que anuncias pode abrir-se
para ti
mais que os lábios rasgados do meu sexo.
Um parto é sem regresso.
E é já dos outros
a fé que rege o mundo
e que os teus braços breves esticou
num abraço maior do que podias.
Não o teu verbo
mas o teu corpo
eu quero
que nele se transformou o meu poder.
Morre sozinho
Se não crês em ti.
Meu ventre bifurcando lembra ainda
a forma imaculada do teu crânio.

sábado, 27 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Ventre da noite, com grilos
  
O ventre da noite expulsa poléns
e grilos violeta olham uma lua
que inunda os horizontes.

que versos são estes?
A noite tem um ventre!
A noite tem ventre.
Como um artigo indefinido
pode estragar tudo!

a gramática e a morfologia
deviam ser violeta
e inundar horizontes,
E se possível tanger liras

desmesuradas.

António Eduardo Lico
Ontem coloquei uma poesia de D. Dinis. Hoje coloco uma poesia do seu avô, Afonso X O Sábio, que para além das famosas Cantigas de Santa Maria, cultivou sobretudo as canções satíricas, chegando até nós 44 dessas canções. Afonso X assume grande importância no contexto da poesia de matriz Galaico-Portuguesa porque, apesar de ser rei de Castela e Leão, elegeu o galaico-português para escrever as suas poesias:

Achei Sancha Anes encavalgada

Achei Sancha Anes encavalgada,
e dix'eu por ela cousa guisada,
ca nunca vi dona peior talhada,
e quige jurar que era mostea;
e vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar con un seu'scudeiro,
e non ía milhor un cavaleiro.
Santiguei-m'e disse: «Gran foi o palheiro
onde carregaron tan gran mostea»;
vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar indo pela rúa,
mui ben vistida en cima da múa;
e dix'eu: «Ai, velha fududancúa,
que me semelhades ora mostea!»
Vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

No passado Sábado passaram 50 anos que José Afonso gravou o tema "Vampiros".
Ainda hoje continua actual.
A poesia e o tema original de há 50 anos:

Os Vampiros

No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas Pela noite calada
Vêm em bandos Com pés veludo
Chupar o sangue Fresco da manada

Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada [Bis]

A toda a parte Chegam os vampiros
Poisam nos prédios Poisam nas calçadas
Trazem no ventre Despojos antigos
Mas nada os prende Às vidas acabadas

São os mordomos Do universo todo
Senhores à força Mandadores sem lei
Enchem as tulhas Bebem vinho novo
Dançam a ronda No pinhal do rei

Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada

No chão do medo Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos Na noite abafada
Jazem nos fossos Vítimas dum credo
E não se esgota O sangue da manada

Se alguém se engana Com seu ar sisudo
E lhe franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada

Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada




Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águasÇ

Nirvana

 Um peixe não atinge o nirvana
embora viva na água.
As pedras afundam-se
e não têm escamas
e estão na marge de lá
de qualquer nirvana

Nem os peixes do Tibete
chegam perto do nirvana
ou será o problema
da altitude?

Não vou pescar,
não quero distrair
peixe algum da sua via:
a de ser pescado

Se um dia o nirvana
acordar debaixo
da minha cama
hei-de lembrar-me
do peixe riscado
de violeta correndo
veloz para o anzol
como monge
que corre para o nirvana

Este é o meu ensinamento:
quem o seguir não
atingirá nirvanas.
quando muito
poderá contemplar
a outra margem
do rio e olhar os peixes.
Uma poesia de D. Dinis:


Non posso eu, meu amigo

...Non posso eu, meu amigo,
con vossa soidade
viver, ben vo-lo digo;
e por esto morade,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.

Non posso u vos non vejo
viver, ben o creede,
tan muito vos desejo;
e por esto vivede,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.
Nasci em forte ponto;
e, amigo, partide
o meu gran mal sen conto,
e por esto guaride,
amigo, u mi possades
falar e me vejades.
--- Guarrei, ben o creades,
senhor, u me mandades.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Cronos convence-me

(recusa-se a morrer) – mataram-no e ele simplesmento ignorou.
isto de ser deus de primeira geração

tem que se lhe diga.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Camões musicada e cantada por José Afonso:

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.


quarta-feira, 24 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Para aprender a matar deuses...


As impetuosas palavras
que se desenham
para matar deuses
que renascem a cada morte!

Podiam não renascer
e ficar na sombra ténue
dos muitos paraísos que existem,
inertes e de barba por fazer

Renascem porque
as teologias assim o querem;
para serem teologias

Convenientes para todos,
já mortas quando nascem
mas que dão nascimento

Aos deuses que queremos
matar, ás dezenas, milhares
como se rejeitássemos
as nossas criações

Só fica o poema
ou as palavras
com que criamos os deuses
que a seguir matamos

António Eduardo Lico
Fado Falado por João Villaret (1913-1961), actor e declamador:





terça-feira, 23 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Vintage Porto

Ah o vinho que corre no Douro
filosófico na sua melancolia rubra
não tem margens definidas
e corre para mares ignorados.
Rubro, como convém,
desafia químicas antigas
e gota a gota, indiferente,

tinge o rio de invisível vermelho.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Sebastião da Gama:

Cantilena

Cortaram as asas
ao rouxinol !
Rouxinol sem asas
não pode voar.
II

Quebraram-te o bico,
rouxinol !
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

III

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol !
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver...

A poesia musicada e cantada por Francisco Fanhais:


segunda-feira, 22 de julho de 2013

A Canção de Embalar cantada por José Afonso:


Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Perfumes tangentes ao vinho

Vem de tão longe quanto os perfumes
e de tão fundo como corolas.
Abrasa-me o sangue nas veias
tinge-me os ossos de cor rubi:
vinho! Fonte de todas as flores

António Eduardo Lico
Uma poesia de José Afonso:

Canção de Embalar

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

domingo, 21 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:



Junto de um rio...o obituário das palavras...

Quem ousa calar os deuses
colocando-lhe na boca
palavras que não sabem?
Nadando rente à margem
o peixe, nem sabe
que existem palavras líquidas
que secam lábios
quando os percorrem.
Peixes e deuses
ignoram palavras;
mudos e perdidos
em líquidas moradas
vivem sós, sem esperar
uma só e desoladora
palavra.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Luis de Góngora:

En la verde orilla

Los rayos le cuenta al Sol
Con un peine de marfil
La bella Jacinta un día
Que por mi dicha la vi
En la verde orilla
De Guadalquivir.

La mano oscurece al peine;
Mas qué mucho, si el abril
La vio oscurecer los lilios
Que blancos suelen salir
En la verde orilla
De Guadalquivir.

Los pájaros la saludan,
Porque piensa (y es así)
Que el Sol que sale en oriente
Vuelve otra vez a salir
En la verde orilla
De Guadalquivir.

Por sólo un cabello el Sol
De sus rayos diera mil,
Solicitando invidioso
El que se quedaba allí
En la verde orilla
De Guadalquivir.

sábado, 20 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Junto de um rio...o obituário das palavras...

Quem ousa calar os deuses
colocando-lhe na boca
palavras que não sabem?
Nadando rente à margem
o peixe, nem sabe
que existem palavras líquidas
que secam lábios
quando os percorrem.
Peixes e deuses
ignoram palavras;
mudos e perdidos
em líquidas moradas
vivem sós, sem esperar
uma só e desoladora

palavra.

António Eduardo Lico
Um soneto de Teixeira de Pascoaes. Mantive a grafia original:

Tristêza

O sol do outomno, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lagrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...

Eis como a minha vida vae passando
Em frente ao seu Phantasma... E fico a ouvir
Silencios da minh'alma e o resurgir
De mortos que me fôram sepultando...

E fico mudo, extatico, parado
E quasi sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...

Só a longinqua estrela em mim actua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petreficada esphinge de saudade...

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário este rio que corre sem águas:


Parti-me em flores...

Parti-me em flores
e não perdi, ou venci.
As pétalas apodreceram,
os perfumes voaram
nos ventos do Outono.

António Eduardo Lico

Camilo Castelo Branco

Un soneto de Camilo Castelo Branco:

Comédia humana

Literatos! Chorai-me, que eu sou digno
Da vossa gemebunda e velha táctica!
Se acaso tendes crimes em gramática,
Farei que vos perdoe o Deus benigno.

Demais conheço a prosa inflada, enfática,
Com que chorais os mortos; e o maligno
Desafecto aos que vivem… Não me indigno…
Sei o que sois em teoria e em prática.

Quando o avô desta vã literatura
Garret, era levado á sepultura,
Viu-se a imprensa verter prantos sem fim…

Pois seis dos literatos mais magoados,
Saíram, nessa noite embriagados,
Da crapulosa tasca do Penim.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário este rio que corre sem águas:


Os rios são as lágrimas dos que choram...

Os rios são as lágrimas dos que choram
porque sabem que as fontes não podem secar
e cabe aos rios levar dores e mágoas
para os grandes mares; lá onde o sal
atinge o branco e dores e mágoas
podem voltar, como palavras.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Álvaro de Campos:


II - Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades


Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do «Sentimento de um Ocidental»!



Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas.

Que nem são países, nem momentos, nem vidas.

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Humedece interiormente o instante lento e longínquo!



Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lhas possa dar...



Quando eu morrer,

Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,

Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,

Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos

Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,

Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,

Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,

Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,

Platão sonhando viu a ideia de Deus

Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.

Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.



Seja por esta hora que me leveis a enterrar,

Por esta hora que eu não sei como viver,

Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,

Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,

Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,

Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível

Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.



Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.

Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio

A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,

Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria

— Tu que me conheces — quem eu sou...

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Dai-me tanta água, quanta precise...

Dai-me tanta água, quanta precise,
para que nunca o orvalho se esgote
e a mais humilde flor
possa sempre fazer florir
o seu próprio amanhecer

António Eduardo Lico

Ovídio Arte de Amar

Uma poesia da Arte de Amar de Ovídio, tradução de Natália Correia e David Mourºao-Ferreira:


Qual é o amante experimentado
que os beijos não misture com palavras de amor?
Mesmo que a tua amada tos não dê
rouba-lhe os beijos que não te quiser dar.
Talvez comece por resistência opôr
e te chame «insolente»,
mas resistindo pretende ser vencida.
Não molestes com beijos mal roubados
os seus lábios sensíveis, delicados;
que queixar-se não possa da tua grosseria.
Roubar um beijo e não roubar o resto
é uma falta de jeito que merece
perder os favores já concedidos.
Depois do beijo, ó homem, por que esperas
para outros desejos consumar?
Não é pudico o teu comportamento;
deste sim mostras de um tosco acanhamento.
Teria sido violência, dizes;
mas dessa violência não fogem as mulheres;
o que elas gostam de nos conceder,
muitas vezes concedem, resistindo.
A mulher violada por um rapto insolente
torna a violação como um doce presente;
e aquela que coagi-la fora fácil
e intacta se retira,
mesmo que o rosto alegria aparente,
vai com certeza descontente.
Foram Febe e a irmã violentadas.
Nem por isso ambas as raptadas
amaram menos aquele que as raptou.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Caligrafia

A minha caligrafia íntima
nunca escreveu versos
metafísicos.
Seguramente, filósofos
com vocação de estetas
e que sempre seguram candeias
e vestem mantos verdes
dirão detectar pequenas
partículas esotéricas
na caligrafia que vos apresento.
E assim sendo, está provado
quanticamente.
A minha letra mais íntima
não a escrevo; desenho-a
no ar; espero que caia
mansamente e se desvaneça
sem metafísica.

António Eduardo Lico

José Saramago

Uma poesia de José Saramago:

Ergo uma rosa

Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me doi de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Na margem de um rio, as horas são ainda mais absurdas


As horas são absurdas,
passam, e já não são,
sem deixar de o ser.
Um desconhecido esteta
clama na confluência
do Ser e Não Ser
que o Belo é absurdo
porque é belo em si mesmo,
indiferente ao tempo
e às horas que passam
e já não o são,

sem deixar de o ser.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Tomaz Kim, nome literário de Joaquim Fernandes Tomaz Ribeiro-Grillo:


ANTES DA METRALHA...


Antes da metralha e do dedo da morte...
Antes dum corpo jovem, anônimo,
apodrecer, esquecido, à chuva...
Ou singra, boiando nas águas mansas...
Ou se despedaçar contra o céu indiferente...

Antes do pavor e do pranto e da prece...
Um adeus longo e triste
aos poemas amontoados no fundo da gaveta
e à renúncia ao teu amor brando
e às noites calmas e ao sonho inacabado...

Antes da morte sem mistério...
Um adeus longo e triste
à luta de que não se partilhou!

domingo, 14 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Nas margens, a Esfinge...

A Esfinge habita as margens
apenas como esfinge, de pedra,
absurdamente de pedra
impenetrável ao silêncio
que lhe vem de fora;
e vive, no entanto
em total mudez, na pedra
que lhe é externa,
só, contemplativa,
fazendo do tempo pedra,

só nas margens, sem esperar nada.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Vidal Jogral de Elvas transcrito para português moderno por Natália Correia:

Formosinha de Elvas

Faz-me por ela morrer
e traz-me desesperado
alguém que dá gosto ver
e de corpo bem talhado,
por quem a morte hei-de ter
como cervo lanceado
que se vai do mundo a perder
da companhia das cervas.

Antes ficasse sandeu
ou me embruxassem com ervas
no dia em que me apareceu
a tal formosinha de Elvas.

Mais a morte me convém,
pois da sensatez me queixo
de quem desejo não tem
de matar o meu desejo
e me parece tão bem
que cada vez que a vejo
me lembra a rosa que vem
saindo por entre as relvas.

Antes ficasse sandeu
ou me embruxassem com ervas
no dia em que me apareceu
a tal formosinha de Elvas.

sábado, 13 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:

Os rios sem águas são misteriosos

 O láudano que corre como um rio
nos Hinos à Noite, subtil
e fino no traço que desenha.
Deuses loucos dançam na roleta
um pas de deux com Dostoiewski
e orvalhos cintilantes de luz
dançavam no eterno copo de vinho
que Hafez erguia na mão
como se fora uma rosa.
Regresso para dentro de mim mesmo

como rio que corre sem águas.

António Eduardo Lico

Afonso Duarte

Uma poesia de Afonso Duarte:

Hora Mística

Noite caindo ... Céu de fogo e flores.
Voz de Crepúsculo exalando cores,
O céu vai cheio de Deus e de harmonia.
Silêncio ... Eis-me rezando aos fins do dia.

Névoa de luz criando imagens na água,
Nome das águas esculpindo os céus,
Tarde aos relevos húmidos de frágua,
Boca da noite, eis-me rezando a Deus.

Eis-me entoando, a voz de cinza e ouro,
— Oh, cores na água vindo às mãos em branco! —
Minha ópera de Sol ao último arranco.

E, oh! hora mística em que o olhar abraso,
— Sol expirando aos Pórticos do Ocaso! —
Dobra em meu peito um oceano em coro.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Não consta que Zeus fosse versado em gramática...

Não consta que Zeus fosse versado em gramática
e em Roma quis ser conhecido como Júpiter,
quase como se fosse a quarta geração olímpica.
A gramática não é atributo divino.
Como ficas bem pairando sobre o Coliseu
hesitante entre Homero e Virgílio
e Afrodite banhando-se feliz no Tibre
ignorando que já era Vénus.
O enigmático Eneias, esse de Tróia
que a Musa quis de Roma fundador
e viajante teleológico, guiado por experimentado aedo
que já te conhecia o destino.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Camilo Pessanha:

Imagens que Passais pela Retina

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
_ Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
_ O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
_ Estranha sombra em movimentos vãos.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Este rio que corre sem águas

Reponho Uma poesia do poemário Este rio que corre sem águas:


Este rio que corre sem águas

Zeus era lúcido?
Ninguém acredita,
senão não seria uma divindade.
Quem, a não ser um louco
pode assumir a divindade?
Eu não a assumiria;
humildemente aceito
ter demasiada lucidez
e acreditar que os rios correm sem águas,
como o Caos corre sem matéria,
basta-lhe a Noite para correr
até que Céu e Terra se encontrem.

António Eduardo Lico
Uma poesia de Manuel Alegre cantada por Adriano Correia de Oliveira:

Canção para o meu amor não se perder no mercado da concorrência


Nunca vistas os teus olhos
Das manhãs que vais tecendo
Nem soltes os teus cabelos
Onde o amor faz suas tranças.
Com teu cesto de ternura
Nunca vás amor à praça
Onde até o amor se compra
Onde até o amor se vende.
E se eu partir para a guerra
Não perguntes quando volto
Nem com lágrimas desenhes
Minha ausência no teu rosto.
E sobretudo não fales
Meu amor da paz na praça
Onde até se compra a guerra
Onde a própria paz se vende.
Nem perguntes pelo nome
Que no peito escrito trazes
Porque há nomes que se compram
Os nomes também se vendem.
Nessa praça onde tu passas
Tão sem preço como preço
Que o vento teria a morte
Se o vento tivesse preço.
E se eu partir para a guerra
Não perguntes quando volto
Nem com lágrimas desenhes
Minha ausência no teu rosto.


quarta-feira, 10 de julho de 2013

O esboço da chuva

Reponho uma poesia do poemário O esboço da chuva:

Epifania do vinho

 Sorrio e bebo o meu vinho
Como música de Dionísio
O mosto agita a memória

E a divindade volta em glória
Rubra e doce sobre o meu corpo
Abrupta a cada gota de vinho

Sobre as flores que adivinho
Brotando do vinho generosas

E quentes de fugazes perfumes

António Eduardo Lico

Bernardim Ribeiro

Uma poesia de Bernardim Ribeiro de "Saudades" ,ais conhecido por "Menina e Moça":


Pensando-vos estou, filha;
vossa mãe me está lembrando;
enchem-se-me os olhos dágua,
nela vos estou lavando.
Nascestes, filha, entre mágoa,
para bem inda vos seja,
que no vosso nascimento
vos houve a fortuna inveja.
Morto era o contentamento,
nenhuma alegria ouvistes;
vossa mãe era finida,
nós outros éramos tristes.
Nada em dor, em dor crescida,
não sei onde isto há de ir ter;
vejo-vos, filha, formosa,
com olhos verdes crescer.
Não era esta graça vossa
para nascer em desterro;
mal haja a desaventura
que pôs mais nisto que o erro.
Tinha aqui sua sepultura
vossa mãe, e a mágoa a nós;
não éreis vós, filha, não,
para morrerem por vós.
Não houve em fados razão,
nem se consentem rogar;
de vosso pai hei mor dó,
que de si se há de queixar.
Eu vos ouvi a vós só,
primeiro que outrem ninguém;
não fôreis vós se eu não fora;
não sei se fiz mal, se bem.
Mas não pode ser, senhora,
para mal nenhum nascentes,
com este riso gracioso
que tendes sobr’olhos verdes.
Conforto mas duvidoso,
me é este que tomo assim;
Deus vos dê melhor ventura
da que tivestes até aqui.
Que a dita e a formosura
dizem patranhas antigas,
que pelejaram um dia,
sendo dantes muito amigas.
Muitos hão que é fantasia;
eu, que vi tempos e anos,
nenhuma coisa duvido
como ela é azo de danos.
Mas nenhum mal não é crido,
o bem só é esperado,
e na crença e na esperança,
em ambas há uma mudança,
em ambas há um cuidado.

terça-feira, 9 de julho de 2013

O esboço do vento

reponho Uma poesia do poemário O esboço do vento:

Alquimia da Madrugada

 Orvalho nasce na madrugada
mágica Obra que desvanece
de cor o ouro prometido

Da rosa nasce todo o sentido
espelho da lua, água celeste
apodrecida mas sempre pura

Sal subtil que o tempo apura
Oh muda madrugada secreta

Guarda a indizível matéria

António Eduardo Lico

Cabral do Nascimento

Uma poesia de Cabral do Nascimento:


Natal Africano



Não há pinheiros nem há neve,
Nada do que é convencional,
Nada daquilo que se escreve
Ou que se diz... Mas é Natal.

Que ar abafado! A chuva banha
A terra, morna e vertical.
Plantas da flora mais estranha,
Aves da fauna tropical.

Nem luz, nem cores, nem lembranças
Da hora única e imortal.
Somente o riso das crianças
Que em toda a parte é sempre igual.

Não há pastores nem ovelhas,
Nada do que é tradicional.
As orações, porém, são velhas
E a noite é Noite de Natal.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O esboço do vento

reponho uma poesia do poemário O esboço do vento:

À tarde a melancolia escorre...

À tarde a melancolia escorre
como seiva de árvores mortas
e das flores que hão de nascer

Primavera e o sol a morrer
como música no horizonte
que vai morrendo todas as tardes

E nas guitarras que escutardes,
nos violoncelos que tocam breve

a tensa seiva tece (n)a noite

António Eduardo Lico
Uma poesia de João de Deus:

Beijo

Beijo na face
Pede-se e dá-se:
          Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
          Vá!

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
          Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
          Vá!

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
          Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
         Vá!

Guardo segredo,
Não tenha medo...
         Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
         Dê!


Como ele é doce!
Como ele trouxe,
            Flor,
Paz a meu seio!
Saciar-me veio,
           Amor!

Saciar-me? louco...
Um é tão pouco,
         Flor!
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
        Amor!

Talvez te leve
O vento em breve,
        Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
       Amor!

Guardo segredo,
Não tenhas medo
          Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
         Dois...


Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas...
            Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
          Três!

Três é a conta
Certinho, e justa...
           Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta!
          Três!

Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
           Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
          Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
          Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
          Três!

domingo, 7 de julho de 2013

O esboço do vento

Reponho uma poesia do poemário O esboço do vento:



De madrugada os rios...
No pino da madrugada uma
só fonte te cobria de rosas
e rios nasciam-te nos olhos
Ao ritmo de antigos orvalhos
chorados por deuses destronados
a cada florida Primavera
Como se em Abril não chovera
e toda a sede desse em água
mansa e azul de melancolia
António Eduardo Lico

Antero de Quental

Um soneto de Antero de Quental:

Divina Comédia

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis
Os homens clamam: - "Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante.

Porque e que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Por que é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - "Homens! por que é que nos criastes?

sábado, 6 de julho de 2013

O esboço do vento

Reponho uma poesia do poemário (ainda incompleto) O esboço do vento:


O esboço do vento

Era o vento nos teus cabelos
ou o sopro de antigos deuses
à conquista de novos Olimpos

Rindo de todos os velhos ímpios
Mesmo os geómetras e Homero
naturais fazedores de deuses

Nasçam ventos floresçam obuses
onde rosas deviam nascer
celebrando-te a divindade

António Eduardo Lico

Pedro Afonso

Uma poesia de Pedro Afonso:

por causa do fumo

a metade acesa da lua
derrama-se pelo mar
até à ria

ambos assim
a esta distância
parecem quietos

isto de ter que vir fumar
à janela
é um bocado chato
mas às vezes traz poesia

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Amanhecer Obscuro

Reponho uma poesia do poemário amanhecer obscuro:

Bem Aventuranças

Bem aventurados os bancos
que ficam com o nosso dinheiro
e nós ficamos com as dívidas.
Bem aventurada Merkel
que dela será o reino de Bismarck.
Bem aventurado Cameron
que dele será o reino das
couves de Bruxelas.
Bem aventurado Obama
que dele serão mais de um milhão
de mortos das suas guerras imperiais.
Bem aventurado Hollande
com os seus homosexuais na Nôtre Dame
e bombas no Mali..
Bem aventurada Nato
que dela serão os anjos metálicos
por sobre o céu da Líbia.
Bem aventurados todos os
bem aventurados e os
não bem aventurados
que esperam nuvens plácidas
e açucenas de carvão
nos cabelos das mulheres.
Os robots voadores de Obama
são bem aventurados
porque matam sem saber
e fazem excrecéncias nos céus
logo abaixo dos deuses
como se tangessem
as liras da Roma Imperial.
Bem aventuradas as televisões
do Império e os jornais
do Império e as rádios
do Império e os blogs do Império
que deles é o reino da mentira.
Os economistas do Império
são bem aventurados
porque transformam a miséria
do mundo em dinheiro
no bolso dos seus amos.
Bem aventurados os que
morrem de fome que deles
não se farão epitáfios
e os seus ventres inchados
voarão como balões loucos
nas festas de caridade.
Mal aventurado o poeta
que ergue lírios como
se fossem sinos a tocar a rebate
que dele só serão as noites futuras.
Bem aventuradas as bem aventuranças
que delas só serão a argila
ou o pó que dela ficar.

António Eduardo Lico

Li Bai

Uma poesia de Li Bai:

Perguntais por que moro na verde montanha.
Intimamente sorrio, mas não posso responder.
As flores de pessegueiro são levadas pela água do rio...
Há outro céu e outra terra, para além do mundo dos homens.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Amanhecer obscuro

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:

Um Abril de Abril


Em Abril, flores mil
Para explodirem
Com o orvalho das madrugadas
E pintarem a tristeza
Das cores que só as flores têm.
Georges, sabes, no meu país
Há tardes de Abril
Que parecem Agosto
E em Lisboa o Tejo
Esse eterno filho de Abril
Casa o seu azul baço
Com o fulgurante azul de céu
E ao longe formam
Uma só linha azul que marca Abril.
Georges, sabes, no meu país
Há flores que nascem antes do seu tempo
Como se quisessem
Vestir Abril de perfumes
E febril alegria
E as moças morenas
Cantam os hinos secretos
De todos os perfumes de Abril.
Sabes, Georges, no meu país
Abril só começa de madrugada
Como se quisesse nascer
do orvalho e tecido pelo
perfume das flores que no meu país
nascem antes do tempo.
Sabes Georges, no meu país
Abril só pode ser Abril.

António Eduardo Lico

Carlos Paredes

Uma peça musical de Carlos Paredes - António Marinheiro - feita para a peça de teatro "António Marinheiro" de Bernardo Santareno.


quarta-feira, 3 de julho de 2013

Amanhecer obscuro

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:

PPC, ou a balada de todos os bancários a que muitos chamam políticos

PPC, seja, Pedro Passos Coelho
não usa chapéu de feltro
nem conhece a estética do canto dos
canários e não distingue
um checo de um eslovaco.
Usa um pequeno rectângulo
na lapela: via-se numa foto de jornal.
Olhando com atenção, lá está:
é a bandeira de Portugal.
De uma só vez e num gesto
a la Georges Bush, PPC pendura o País.
PPC não sabe onde fica
o Forte de S.João Baptista de Ajudá
e pensa que Porto Seguro fica
onde fica o dito Partido Socialista.
PPC é bancário; bancário de um só sentido:
só recebe, e quer receber mais, e não pagar.
PPC aderiu a uma moda antiga:
políticos são todos bancários.
Trabalham para os banqueiros,
nem que tenham que usar na lapela,
bandeiras e fingirem que são inteligentes, diligentes
e piedosos. Não desisto de ver PPC
fazer versos ao padre Américo

e fazer lobbying pela santidade de Cavaco Silva,
também ele um devotado bancário.
PPC é contabilisticamente ininputável
e faz balancetes com talões do BPN nas horas de ócio.
PPC, oficia o seu múnus como um Cardeal clandestino
saído, não de refinados salões florentinos,
ordenado como foi na jsd, e com o secreto
sonho de ser canonizado pela troika
e venerado para todo o sempre
nos santuários que vão de Bruxelas a Berlim e a Washington.

António Eduardo Lico

Carlos Oliveira

Uma poesia de Carlos Oliveira:

Cantiga do Ódio

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

terça-feira, 2 de julho de 2013

Amanhecer obscuro

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:

Reflexão útil num dia de chuva

Eu gosto de tudo o que faço.
O que não faço, não
é aquilo que faço.
Pura Tautolgia! Dir-me-ão:
antes tautólogo
que tarólogo.
Podia ter dito tautologista;
podia ter dito tarologista.
Apenas não quis ficar sem o logos.
Não sou esteta, nem mesmo
obstetra.Poderá haver quem me pense um tetraedo:
não sou e da Geometria
apenas me interessa
a primeira letra.
A chuva cai, líquida
como convém a toda a chuva

e depois pára, sem reflectir.

António Eduardo Lico

Poesias em Mirandês

Uma poesia em Mirandês. Creio que o autor da poesia é José Almendra:

MIRANDO PAR’EL…

Surbendo la malga de caldo,
Cula mano trémula d’eidade,
Arramaba nais que surbie,
Caíesse-le la denidade.

El que fura tan baliente,
Para durar a l’eiternidade,
Alhi staba cumo pedinte!
Ajuda pedie por caridade.

Chegar a bielho ye galardon,
Mas nó desta maneira.
Belheç tamien ye solidon,
Acabar sien eira nin beira.

Mas para alguns nun ye assi
Ándan listos até morrir,
Porque l’habie de tocar a el
Tener que tanto sofrir?

Iba-se a rebuoltar?
Contra quien i porquei?
Tenie que se cunformar,
Porque esto tamien ye de lei.

Ye lei de la naturaleza,
Nada buona d’antender.
Ten que ganhar fortaleza,
Para cuntinar a padecer.

Qual será sou pensar?
Que l’eirá na eideia?
Talbeç nien el saba…
I a mi?! Nien eideia…

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Amanhecer obscuro

Reponho uma poesia do poemário Amanhecer obscuro:


Pior que roubar um banco é fundar um banco

Bertold Brecht

Poema concreto


Escrevo poemas que quisera
efémeros, como o vento
que beija as flores
e levanta ondas ao mar
para logo se desfazerem na areia da praia,
como se o mar todo se acabasse naquele momento.

O vento quando beija as flores
não é como um cheque, ou uma letra:
quando se acabam, os bancos emitem mais.
Mesmo que se lhes acabe o dinheiro,
emitem mais. Porque eu não posso
emitir o meu dinheiro quando se me acaba?
Quando se me acabam as flores, procuro por mais.
O vento quando beija as flores, beija-as
como se nunca acabasse, e se acabasse
o saldo não seria negativo.

Até o Olimpo e os belos deuses gregos
se acabaram; ninguém se importou
em emitir mais; depois vieram profetas
que emitiram deuses e paraísos diferentes

Os bancos e os banqueiros
emitem dinheiro como se
emitissem paraísos e divindades.
Houvera quem os roubasse
como o vento rouba das flores
os perfumes.

António Eduardo Lico

Soneto de Camões

Um soneto de Camões:


Depois que quis Amor que eu só passasse
Quanto mal já por muitos repartiu,
Entregou-me à Fortuna, porque viu
Que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que ele só me reduziu,
O que para ninguém se consentiu,
Para mim consentiu que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando,
Copioso exemplário para a gente
Que destes dois tiranos é sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!