quinta-feira, 31 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Oráculo

Precisava de ser o oráculo de mim mesmo
Assim como se tivesse um oráculo dentro de mim
não o de Delfos, hoje não me sinto classicista,
nem me apetece fazer alpinismo no Parnaso;
um oráculo ante-moderno, pelo menos
assim não tenho que dar explicações
pelo menos muitas; algumas terei que dar.
Posso sempre desculpar-me com os labirintos,
os oráculos têm labirintos a que só
os purificados podem aceder.
Se ao menos Pitia vivesse em mim!
Creio que vou acabar o dia a meditar
sobre o Bezerro de Ouro e vou
desistir de traçar o meu destino…oracular.


António Eduardo Lico
Alexandre O'Neill é o poeta de hoje.
Nascido em Lisboa em 1924 e falecido em Lisboa em 1986, O'Neill foi um dos mais importantes membros do surrealismo português. Embora tenha rompido com o surrealismo, a sua poesia foi apresentando sempre as marcas daquela corrente.
Pode dizer-se que na poesia de O'Neill se vislumbram influências do surrealismo a par com algumas experiências situadas bem próximo do concretismo.
Fica este poema:


Gato 

Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Gardening flowers that do not exist…

If I was a gardening poet hermit,
even if I hadn’t a garden, just one.
A garden with a small pond and gardenias,
with gravity I would care
the flowers that do not exist


António Eduardo Lico
 O poeta de hoje é Alberto de Lacerda.
Nascido em 1928 na Ilha de Moçambique e falecido em 2007 em Londres.
Foi locutor e jornalista da BBC. Viajou pelo Brasil e pelos Estados Unidos, onde leccionou em várias Universidades. Em Portugal foi um dos fundadores da revista de poesia Távola Redonda.
Fica este poema:

A Mouzinho de Albuquerque

Tinhas o germe odioso dos tiranos
O fogo sinistro da intolerância
Mas que era feito duma só palavra
Herói soberbo
Ó árvore gigantesca
Que tu próprio abateste
Em vez dos deuses
Que te contemplam a distância

terça-feira, 29 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





A tocadora de harpa

Tocavas harpa com desoladas mãos
e plateias quentes aplaudiam
os gestos serenos dos teus dedos.

No final, agradecias
e arrumavas as mãos e os dedos.
Abandonada, a harpa jazia no palco.


António Eduardo Lico
Alexandre Pinheiro Torres é o poeta de hoje.
Nascido em Amarante em 1923 e falecido em Cardiff em 1999, Alexandre Pinheiro Torres foi professor, poeta, cronista, romancista, crítico literário.
Exilado em virtude de ter sido proíbido de ensinar em Portugal, acaba por ir para Cardiff onde leccionou da respectiva Universidade. Fundou pela primeira vez na Grã-Bretanha uma disciplina de Literatura Africana de Expressão Portuguesa. Fundou ainda o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros.
Fica este poema:

Pode acontecer que já esteja bem morto
quando alguém disser que eu pudera ser grande;
e, então, será inútil o póstumo conforto:
nunca gozarei não ser o pobre Alexandre!

Pode acontecer que as hipócritas dores
que venham trazer ao pé do mausoléu,
perpassem por ele em tão fortes clamores
que façam abrir-me o ferrolho do Céu.

Pode acontecer que eu, então!, tenha o cúmulo
de todas as coisas sonhadas e vãs,
e que, assim, na vida começada no túmulo,
venha a conhecer o esplendor das Manhãs!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Memórias no vento

Do vento há memórias
que sibilam nas relvas
e ondulam a espuma das ondas
como se fizessem flores líquidas.

Do vento há memórias
que se esquecem, ruídos de verde
músicas nunca tocadas
e essa melancolia que se vai com a tarde.


António Eduardo Lico

Julio Cortazar é o poeta de hoje.
Nascido em 1914 na embaixada argentina em Bruxelas e falecido em Paris em 1984. É um dos mais importantes nomes da literatura mundial.
Foi professor, tradutor, poeta e ficcionista. Cortazar foi sem margem para dúvidas um escritor dos mais inovadores e versáteis da sua época. A sua forma de abordar a ficção exerceu uma enorme influência em toda a literatura da América Latina.
Fica este poema:

LOS AMANTES

¿Quién los ve andar por la ciudad
si están todos ciegos?
Ellos se toman de la mano: algo habla
entre sus dedos, lenguas dulces
lamen la húmeda palma, corren por las falanges,
y arriba está la noche llena de ojos.

Son los amantes, su isla flota a la deriva
hacia muertes de césped, hacia puertos
que se abren entre sábanas.
Todo se desordena a través de ellos,
toda encuentra su cifra escamoteada;
pero ellos ni siquiera saben
que mientras ruedan en su amarga arena
hay una pausa en la obra de la nada,
el tigre es un jardín que juega.

Amanece en los carros de basura,
empiezan a salir los ciegos,
el ministerio abre sus puertas.
Los amantes rendidos se miran y se tocan
una vez más antes de oler el día.

Ya están vestidos, ya se van por la calle.
Y es sólo entonces
cuando están muertos, cuando están vestidos,
que la ciudad los recupera hipócrita
y les impone los deberes cotidianos.

domingo, 27 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





A fogo, um pássaro...

Há um pássaro por dentro do fogo.
Prometeu, esse anjo caído é que sabia
que quem voa, não é o pássaro
mas a chama, esse fogo que tem as asas.


António Eduardo Lico
O poeta de hoje é Luís Conceição. Tenho o prazer de ser seu amigo, e desfrutar de proveitosas conversas acerca da Poesia e de muitas outras coisas.
Arquitecto de formação, doutorado em arquitectura e com muitos anos de ensino na área, a poesia é-lhe necessária para completar o traço.
Fica esta poesia, tirada de um seu projecto poético Prosápias:


As minhas amigas da noite

As minhas amigas da noite
São vazias e obtusas...
Cheiram a álcool que tresandam
E no sexo são profusas.

As minhas amigas da noite
São geralmente idosas
Qualquer que seja a sua idade
queimaram horas sedosas

As minhas amigas da noite
são medusas experientes
tecnicamente correctas
sexualmente eficientes

As minhas amigas da noite
de dia parecem trapos
escondem-se por trás dos corpos
transformam príncipes em sapos...

As minhas amigas da noite
arrastam palavras e sexo
confundem corpos com copos
e dizem coisas sem nexo
as minhas amigas da noite...

sábado, 26 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





O equador do teu sorriso

O teu sorriso cortado por um equador
imaginário como todos os equadores.
A norte um perfume que voa com os pássaros
a sul esse labirinto feito cristal


António Eduardo Lico
O poeta de hoje é Marcial. Cidadão Romano, nascido na Hispânia, cerca de 38 ou 40 e falecido também na Hispânia cerca de 102. viveu a maior parte da sua vida em Roma.
Elevou o epigrama á perfeição e definiu-lhe quer o modelo e a atmosfera. Em regra Marcial usou o verso curto, normalmente dois versos, embora algumas vezes tenha escrito epigramas com 14 versos.
Nos seus epigramas, Marcial retrata as atmosferas exóticas do estilo de vida romano, quer público, quer privado, e onde a vida sexual dos romanos é tema abundante, embora não único. A sua poesia exerceu considerável influência em muitos poetas dos séculos posteriores
Fica este exemplo dos famosos epigramas de Marcial:

Se depilas o peito, as pernas, mais os braços,
Se teu pénis também em torno é depilado,
É porque à tua amante assim melhor agradas…
Mas em quem pensas tu ao depilar o rabo?

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Salamina

Ai Salamina, como Xerxes te chorou
perdido o seu ocidental sonho.
Queria apenas Salamina por Salamina
Ai Salamina onde navegam os teus barcos?
Ou é o azul das tuas águas que está em ruínas?


António Eduardo Lico
O poeta de hoje é Daniel Filipe.
Nascido na Ilha da Boavista em Cabo Verde, então colónia portuguesa, em 1925. Estudou em Portugal e colaborou nas Revistas Seara Nova e Távola Redonda. Faleceu em 1964. poeta e jornalista foi preso várias vezes e barbaramente torturado pela polícia política do regime.
Fica este poema:

A Invenção do Amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e
detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa
esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração
e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros. É absoIutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas

Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte
o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher e o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócios
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra a afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência um universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga

Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em circulos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Entretanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem e da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro

É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio

Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas
do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado

SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA

Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
Escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resoIvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção cientifica
Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão,
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica.

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu

Esperam por ela em casa: duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade

Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando nas esquinas

Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A policia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:



Tria Fata

Como as três Parcas fiam o Destino
a última palavra corta o fio
e emudece como Parsifal.
Muito mais tarde, e das ruínas
pode voltar como poesia.


António Eduardo Lico


Nascido em Santiago do Cacém em 1911 e falecido em Lisboa em 1993, Manuel da Fonseca é o poeta de hoje.
Para além de poeta, foi contista, cronista e romancista e um admirável contador de estórias e acima de tudo um homem bom.
Cantou a vida tal como ela é, e om seu canto foi para os humildes e espoliados e explorados.
Fica este poema:


Os olhos do poeta 


O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Deusa esquecida

De tão última que eras
nem chegaste a ser criada
e no entanto nasciam-te peixes dos pés
quando deixavas os rios.
E eras deusa porque não foste criada
e eras deusa porque te nasciam peixes dos pés.


António Eduardo Lico
Nascida no Rio de Janeiro em 1901 e falecida na mesma cidade em 1964, Cecília Meireles é a poetisa de hoje. Para além da poesia estendeu a sua actividade pelo ensino, pintura e jornalismo.
Cecília Meireles é seguramente uma da vozes líricas mais importantes da poesia em Língua Portuguesa.
Fica esta poesia:


Canção do Amor-Perfeito

Eu vi o raio de sol
beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Diana, ou a lua como reflexo...

Tenso o arco, Diana e a absurda flecha
que fere o silêncio e a luz
De tudo o que és
apenas fica a lua negra
e essa poesia que te enfeita os cabelos.


António Eduardo Lico

León Felipe, nome literário de Felipe Camino Galicia de la Rosa é o poeta de hoje.

Nascido numa localidade de Zamora em 1884 e falecido na Cidade do México em 1968. Teve vida aventurosa e bem longe dos seus estudos em farmácia.
Não lhe foi reconhecido o real mérito da sua poesia. Muitas vezes citado como uma espécie de ponte entre a geração de 98 e a geração de 27, sem que lhe fossem dadas as credenciais de nenhum dos movimentos. O próprio Juan Ramón Jimenez disse de León Filipe "El mejor de los de menos importancia".
Mas deixe-se que seja a própria poesia que León Felipe fale:


COMO AQUELLA NUBE BLANCA

Ayer estaba mi amor
como aquella nube blanca
que va tan sola en el cielo
y tan alta,
como aquella
que ahora pasa
junto a la luna
de plata.

Nube
blanca,
que vas tan sola en el cielo
y tan alta,
junto a la luna
de plata,
vendrás a parar
mañana,
igual que mi amor,
en agua,
en agua del mar
amarga.

Mi amor tiene el ritornelo
del agua, que, sin cesar,
en nubes sube hasta el cielo
y en lluvia baja hasta el mar.

El agua, aquel ritornelo,
de mi amor, que, sin cesar,
en sueños sube hasta el cielo
y en llanto baja hasta el mar.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Há quem tenha mantras para dizer...

Dizias mantras, não muitos, mas dizias alguns.
Felizes os que dizem pelo menos alguns mantras
têm muitos mais para dizer, saibam-nos ou não.
Os que não têm mantras para dizer,
não têm mantras para dizer, nem sabem
os mantras que ainda poderiam dizer.
Se eu fosse um filósofo grego
ia mesmo agora para a pólis discursar:
os que dizem mantras, dizem mantras;
os que não dizem mantras, não dizem mantras!
Seria assim o meu discurso.


António Eduardo Lico
António Aleixo é o poeta de hoje.
Nascido em Vila Real de Santo António em 1899 e falecido em Loulé em 1949.
Foi pastor e cauteleiro.
Quando procuramos dados acerca do poeta, invariavelmente deparamos com a seguinte classificação: António Aleixo foi um poeta popular. Nada de mais errado. Ou se é poeta, ou não se é. E António Aleixo era poeta e era poeta até à medula dos ossos. Pouco importa se não conseguiu acabar a instrução escolar, e ser semi-analfabeto. O que deixou em poesia, fosse em quadras pu em outras formas poéticas é de relevo. Talvez para alguns (muitos) alguém semi-analfabeto não possa ser escritor, ou poeta. Felizmente não é assim.
Deixo alguns exemplos da arte de António Aleixo, que numa simples quadra era capaz de encaixar a situação mais complexa:



Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando, a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.

Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.

À guerra não ligues meia,
porque alguns grandes da terra,
vendo a guerra em terra alheia,
não querem que acabe a guerra

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?

P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.

O mundo só pode ser
melhor do que até aqui,
- quando consigas fazer
mais p'los outros que por ti!

Eu não sei porque razão
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.

Uma mosca sem valor
poisa, c'o a mesma alegria,
na careca de um doutor
como em qualquer porcaria.

Entre leigos ou letrados,
fala só de vez em quando,
que nós, às vezes, calados,
dizemos mais que falando.


Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.

Quem nada tem, nada come;
e ao pé de quem tem de comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime, sem querer

A arte em nós se revela
Sempre de forma diferente:
Cai no papel ou na tela
Conforme o artista sente

Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro lado.

Embora os meus olhos sejam
Os mais pequenos do mundo,
O que importa é que eles sejam
O que os Homens são no fundo.

Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.

O homem sonha acordado
Sonhando a vida percorre
E desse sonho dourado
Só acorda quando morre.








domingo, 20 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Regressando aos pastores...

Os pastores são personagens convenientes
para os poetas e para a poesia.
Os pastores dos poetas
são pastores inventados,
sem rebanhos e sem flauta,
por isso são pastores de poesia.


António Eduardo Lico
Luis Cernuda é o poeta de hoje.
Nascido em Sevilha em 1902 e falecido na Cidade do México em 1963.
Membro da Geração de 27, amigo de Rafael Alberto, Vicente Aleixandre, Garcia Lorca, recebeu a Republica com entusiasmo. Acreditava e queria uma Espanha mais tolerante e moderna.
Fica este poema:

Cómo llenarte, soledad...

Cómo llenarte, soledad,
sino contigo misma...

De niño, entre las pobres guaridas de la tierra,
quieto en ángulo oscuro,
buscaba en ti, encendida guirnalda,
mis auroras futuras y furtivos nocturnos,
y en ti los vislumbraba,
naturales y exactos, también libres y fieles,
a semejanza mía,
a semejanza tuya, eterna soledad.

Me perdí luego por la tierra injusta
como quien busca amigos o ignorados amantes;
diverso con el mundo,
fui luz serena y anhelo desbocado,
y en la lluvia sombría o en el sol evidente
quería una verdad que a ti te traicionase,
olvidando en mi afán
cómo las alas fugitivas su propia nube crean.

Y al velarse a mis ojos
con nubes sobre nubes de otoño desbordado
la luz de aquellos días en ti misma entrevistos,
te negué por bien poco;
por menudos amores ni ciertos ni fingidos,
por quietas amistades de sillón y de gesto,
por un nombre de reducida cola en un mundo fantasma,
por los viejos placeres prohibidos
como los permitidos nauseabundos,
útiles solamente para el elegante salón susurrado,
en bocas de mentira y palabras de hielo.

Por ti me encuentro ahora el eco de la antigua persona
que yo fui,
que yo mismo manché con aquellas juveniles traiciones;
por ti me encuentro ahora, constelados hallazgos,
limpios de otro deseo,
el sol, mi dios, la noche rumorosa,
la lluvia, intimidad de siempre,
el bosque y su alentar pagano,
el mar, el mar como su nombre hermoso;
y sobre todo ellos,
cuerpo oscuro y esbelto,
te encuentro a ti, tú, soledad tan mía,
y tú me das fuerza y debilidad
como el ave cansada los brazos de la piedra.

Acodado al balcón miro insaciable el oleaje,
oigo sus oscuras imprecaciones,
contemplo sus blancas caricias;
y erguido desde cuna vigilante
soy en la noche un diamante que gira advirtiendo a los hombres,
por quienes vivo, aún cuando no los vea;
y así, lejos de ellos,
ya olvidados sus nombres, los amo en muchedumbres,
roncas y violentas como el mar, mi morada,
puras ante la espera de una revolución ardiente
o rendidas y dóciles, como el mar sabe serlo
cuando toca la hora de reposo que su fuerza conquista.

Tú, verdad solitaria,
transparente pasión, mi soledad de siempre,
eres inmenso abrazo;
el sol, el mar,
la oscuridad, la estepa,
el hombre y su deseo,
la airada muchedumbre,
¿qué son sino tú misma?

Por ti, mi soledad, los busqué un día;
en ti, mi soledad, los amo ahora.

sábado, 19 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Escrito para um secreto habitante dos Montes Hermínios

 Secreto e alado voavas nesses montes,
Hermínios pelo teu secreto nome.
Era o teu secreto Olimpo,
o mais verdadeiro.
Ainda hoje os teus divinos parceiros
pensam que moram no Olimpo.


António Eduardo Lico
Nicolás Guillén é o poeta de hoje.
Nascido em 1902 e falecido em 1989, é um dos maiores poetas cubanos. A sua poética desenvolve-se em torno da questão da negritude e da situação social.
Em 1954 foi galardoado com o Prémio Lenine da Paz.
Fica este poema:

PALABRAS FUNDAMENTALES

Haz que tu vida sea
campana que repique
o surco en que florezca y fructifique
el árbol luminoso de la idea.
Alza tu voz sobre la voz sin nombre
de todos los demás, y haz que se vea
junto al poeta, el hombre.

Llena todo tu espíritu de lumbre;
busca el empinamiento de la cumbre,
y si el sostén nudoso de tu báculo
encuentra algún obstáculo a tu intento,
¡sacude el ala del atrevimiento
ante el atrevimiento del obstáculo!

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Observando as Plêiades... e meditando vagamente numa antiga donzela que por amor a um marinheiro foi transformada em ave aquática...

Fulgente no Sete Estrelo
Alcion, líquida estrela
ou imperfeito pássaro luminoso
feito luz pura na água
como um risco sideral
que te fez luz eterna.


António Eduardo Lico
A poesia segundo a arte de José Afonso: Balada Aleixo
Uma homenagem a António Aleixo, cauteleiro e pastor e poeta algarvio.















quinta-feira, 17 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Há muito tempo...

Há muito tempo, iniciei uma poesia
que começava assim:
“As largas Avenidas do Outono...”.
Hoje, sempre há um hoje,
sinto que deveria ter começado assim:
“As largas Avenidas, no Outono”...
Porque é que hoje eu sei
que o Outono não tem Avenidas?
Nem sequer vielas, ou estátuas.
Se hoje fosse ontem
começaria o poema assim:
“As largas Avenidas do Outono...”


António Eduardo Lico
O poeta de hoje é César Vallejo. Peruano, nascido em 1892 e falecido em Paris em 1938, foi também contista, romancista, ensaísta e dramaturgo.
Vallejo é um autor fundamental para a literatura e sobretudo para a poesia do século XX. Sobretudo a sua derradeira obra poética, Trilce inovadora a todos os títulos, torna-o uma das mais incontornáveis figuras da poesia mundial.
Fica esta poesia:




El pan nuestro


Se bebe el desayuno… Húmeda tierra
de cementerio huele a sangre amada.
Ciudad de invierno… La mordaz cruzada
de una carreta que arrastrar parece
una emoción de ayuno encadenada!

Se quisiera tocar todas las puertas,
y preguntar por no sé quién; y luego
ver a los pobres, y, llorando quedos,
dar pedacitos de pan fresco a todos.
Y saquear a los ricos sus viñedos
con las dos manos santas
que a un golpe de luz
volaron desclavadas de la Cruz!

Pestaña matinal, no os levantéis!
¡El pan nuestro de cada día dánoslo,
Señor…!

Todos mis huesos son ajenos;
yo talvez los robé!
Yo vine a darme lo que acaso estuvo
asignado para otro;
y pienso que, si no hubiera nacido,
otro pobre tomara este café!
Yo soy un mal ladrón… A dónde iré!

Y en esta hora fría, en que la tierra
trasciende a polvo humano y es tan triste,
quisiera yo tocar todas las puertas,
y suplicar a no sé quién, perdón,
y hacerle pedacitos de pan fresco
aquí, en el horno de mi corazón…!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Lamento para os deuses desaparecidos

No tempo em que os deuses eram feitos de nada
e os homens eram feitos de tudo
os deuses eram felizes, e eram livres.
E eram muitos, nasciam do nada, e eram tudo.
Agora que desapareceram, devem estar nostálgicos
de divina nostalgia.

Não sei se os deuses, mesmo os desaparecidos,
sentem nostalgia; afinal já não existem.
Mais certo é os deuses que ainda existem
sofrerem de nostalgia, ainda que ferindo
os seus divinos atributos e potestades.

Não, não venho armado de intenções teológicas
ou sequer de nostalgia.
Os deuses antigos eram mais deuses
porque já não existem.


António Eduardo Lico
Nascido em Bilbao em 1916 e falecido em Madrid em 1979, Bas de Otero é o poeta de hoje.
Tendo recebido na infância uma educação religiosa numa instituição de ensino dos jesuítas. a sua poesia inicial tem uma marca religiosa onde são visíveis as influências dos poetas místicos de Espanha. Posteriormente nota-se uma influência, diga-se existencialista e depois uma fase em que as preocupações sociais são bem evidentes na sua poesia.
Fica esta poesia:


Ímpetu

Mas no todo ha de ser ruina y vacío.
No todo desescombro ni deshielo.
Encima de este hombro llevo el cielo,
y encima de este otro, un ancho río

de entusiasmo. Y, en medio, el cuerpo mío,
árbol de luz gritando desde el suelo.
Y, entre raíz mortal, fronda de anhelo,
mi corazón en pie, rayo sombrío.

Sólo el ansia me vence. Pero avanzo
sin dudar, sobre abismos infinitos,
con la mano tendida: si no alcanzo

con la mano, ¡ya alcanzaré con gritos!
y sigo, siempre, en pie, y así, me lanzo
al mar, desde una fronda de apetitos.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Bucólica

Nas Éclogas falamos de pastores.
Nas poesias que não são Éclogas
não falamos de pastores.
Os pastores das Éclogas são breves;
tão fugazes como uma poesia que se escreve
e se torna inútil, porque já foi escrita.
Lá fora a chuva cai oblíqua às horas
e transforma o silêncio em música líquida.
Numa qualquer personagem de mim mesmo,
passam na memória vagos pastores.
Afasto as horas e os relógios
e sou apenas este instante.


António Eduardo Lico
O poeta de hoje é Julio Cortázar. Nascido na embaixada da Argentina em Bruxelas em 1914, vai para a Argentina com cerca de 4 anos. Formou-se em Letras e exerceu a docência. Em 1951 abandonou a Argentina e fixou-se em França, onde viria a falecer em 1984.
Cortázar é um dos mais inovadores no panorama literário da América Latina, e não só. A sua mestria no conto e a forma como criava as suas personagens são marcas do seu génio literário.
Deixo este poema:


EL BREVE AMOR

Con qué tersa dulzura
me levanta del lecho en que soñaba
profundas plantaciones perfumadas,
me pasea los dedos por la piel y me dibuja
en le espacio, en vilo, hasta que el beso
se posa curvo y recurrente
para que a fuego lento empiece
la danza cadenciosa de la hoguera
tejiédose en ráfagas, en hélices,
ir y venir de un huracán de humo-
(¿Por qué, después,
lo que queda de mí
es sólo un anegarse entre las cenizas
sin un adiós, sin nada más que el gesto
de liberar las manos ?)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Mais uma poesia de Sombras luminosas:





Prometeu

Oh insigne Prometeu, da raça de deuses antigos destronados
que sendo deus, não tinha o fogo, apenas o Princípio.
Zeus deu-te um tangível fígado, Homero deu-te qualidades.
Zeus, depressa esgotou a imaginação,
deuses de segunda geração, são assim!
Enviar-te uma águia para te devorar o fígado
e depois espalhar a tua divindade pelo Peleponeso.
Queria-te eternamente póstumo, matando-te todos os dias,
que são assim os deuses de segunda geração;
Héracles te libertou; divino como eras
regressaste ao Princípio.


António Eduardo Lico
Publius Ovidius Naso, Ovídio na Língua Portuguesa, é o poeta de hoje.
Nascido em Sulmo em 43 a.C. e falecido em 17 ou 18 d.C. é o celebrado autor de Heroides, Amores, Ars Amatoria, que são poemários de poesia erótica e Metamorfoses, este último todo ele dedicado à mitologia numa perspectiva de mudança, transformação.
Com Virgílo e Horácio forma a mais celebrada tríade de poetas romanos e da literatura latina.
Exerceu vasta influência na Antiguidade e Idade Media. Dante, Milton, Camões foram exemplos de poetas largamente influenciados por Ovídio. Mestre incontestado do dístico elegíaco, foi banido de Roma por Augusto e exilado no Ponto Euxini, Mar Negro onde iria falecer, em terras hoje situadas na actual Roménia.
Fica um excherto das suas Metamosfoses com tradução do poeta português Bocage:

Antes do mar, da Terra e Céu que os cobre
Não tinha mais que um rosto a Natureza:
Este era o Caos, massa indigesta, rude
E consistente só num peso inerte.
Das coisas não bem juntas as discordes,
Priscas sementes em montão jaziam;
O Sol não dava claridade ao mundo,
Nem, crescendo, outra vez se reparavam
As pontas de marfim da nova Lua.
Não pendias, ó Terra, dentre os ares,
Na gravidade tua equilibrada,
Nem pelas grandes margens Anfitrite
Os espumosos braços dilatava.
Ar e pélago e terra estavam mistos:
As águas era, pois, inavegáveis,
Os ares, negros, movediça, a terra.
Forma nenhuma em nenhum corpo havia
E neles uma coisa a outra obstava,
Que em cada qual dos embriões enormes
Pugnavam frio e quente, húmido e seco,
Mole e duro, o que é leve e é pesado.
Um Deus, outra mais alta natureza

À contínua discórdia enfim põe termo:
A Terra extrai dos céus, o mar da Terra
E ao ar fluido e raro abstrai o espesso.
Depois que a mão divina arranca tudo
Do enredado montão e o desenvolve,
Em lugares diversos que lhe assina,
Liga com mútua paz os corpos todos.
Súbito ao cume do convexo espaço
O fogo se remonta ardente e leve;
A ele no lugar, na ligeireza
Próximo fica o ar; mais densa que ambos
A Terra puxa os elementos vastos,
Da própria gravidade é comprimida.
O salitroso humor circunfluente
A possui, a rodeia, a lambe e aperta.
Assim, depois que o Deus (qualquer que fosse)


O grão corpo dispôs, quis dividi-lo
E membros lhe ordenou. Para que a Terra
Não fosse desigual em parte alguma,
Por todas a compôs em forma de orbe.
Ao mar então mandou que se esparzisse,
Que ao sopro inchasse dos forçosos ventos
E orgulhoso abrangesse as louras praias;
À mole orbicular deu fontes, lagos,
Rios cingindo com oblíquas margens,
Os quais, em parte obsortos pelas terras
Várias, que vão regando, ao mar em parte
Chegam e, recebidos lá no espaço
De águas mais livres e extensão mais ampla,
Em vez das margens assalteiam praias.
O Universal Factor também dissera:


“Descei, ó vales, estendei-vos, campos,
Surgi, montanhas, enramai-vos, selvas!”
Como o Céu, repartido, à dextra parte
Tem duas zonas, à sinistra, duas.
E uma, no centro, mais fogosa que elas,
Assim do Deus o próvido cuidado
Pôs iguais divisões no térreo globo,
Ele é composto de outras tantas plagas:
Aquela que das mais está no meio
Em calores inóspitos se abrasa;
Alta neve enregela e cobre duas;
Outras duas, porém, que entre elas ambas
O Númen situou, são moderadas:
Misto o frio e calor. Fica eminente
A estas o ar que, assim como é mais leve
O pesa da água que da terra o peso,
Tanto mais peso coube ao ar que ao fogo.
Deus ordenou que as névoas e que as nuvens
Errassem no inconstante, aéreo seio;
Que os ventos o habitassem, produtores
Dos penetrantes frios que estremecem,
E os raios, os trovões que o mundo aterram;
Mas o Supremo Autor não deu nos ares
Arbitrário poder aos duros ventos:
Bem que rebentem de encontrados climas,
Resistir-se-lhe pode à fúria apenas,
Vedar que em turbilhões lacere o mundo:
Tanta é entre os irmãos a desavença!
Euro foi sibilar ao céu da Aurora,


Aos reinos nabateus, à Pérsia, aos cumes
Que o raio da manhã primeiro alcança.
O Véspero, essas plagas, que se amornam
Com Febo ocidental, estão vizinhas
Ao Zéfiro amoroso; o fero Bóreas
Da Cítia fera e dos Triões se apossa;
As regiões opostas humedece
Austro chuvoso com assíduas nuvens.
O Númen sobrepôs aos elementos
O líquido e sem peso éter brilhante
Que das terrenas fezes nada envolve.
Logo que tudo com limites certos


Foi pela eterna dextra sinalado,
As estrelas, que opressas, que abafadas
Houve em si longamente a massa escura,
A arder por todo o Céu principiaram;
E, porque não ficasse do universo
Alguma região desabitada,
Astros e deuses tem o etéreo assento,
O mar aos peixes nítidos é dado,
Aves, ao ar, quadrúpedes, à terra.